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Três epigramas de Manuel Bandeira

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Edson Nery da Fonseca*, JB Online

RIO - Se Manuel Bandeira não foi o maior poeta brasileiro ele próprio considerava Carlos Drummond de Andrade como tal foi, sob mais de um aspecto, o mais completo. Alcançou o romantismo e foi romântico a vida inteira, como recordou, em 1945, no poema significativamente intitulado Sextilhas românticas . Embora no poema Os sapos tenha levado no ridículo os termos cognatos de Hermes Fontes, as consoantes de apoio de Goulart de Andrade e o lavor de joalheiro de Olavo Bilac, fez sonetos parnasianos. Seu primeiro livro A cinza das horas (1917) está cheio de poemas simbolistas. E a partir de 1919, quando publicou Carnaval, passou a escrever poemas modernistas. Em Mafuá do malungo a joia gráfica impressa em 1948 por João Cabral de Melo Neto em sua gráfica manual de Barcelona foram reunidos os versos de circunstância de Manuel Bandeira. No livro de 1960, Estrela da tarde, estão os experimentos bandeirianos no concretismo, o movimento lançado em São Paulo pelos eruditos irmãos Haroldo e Augusto de Campos.

Cosmovisão

Completo foi também Manuel Bandeira ao exprimir em seus poemas as mais diferentes e até contraditórias cosmovisões: alegria e tristeza, felicidade e infelicidade, euforia e melancolia, misticismo e erotismo, crença e descrença. E completo ainda pelos diferentes gêneros que adotou: baladas, rondós, redondilhas, madrigais, sonetos, elegias, noturnos, canções, acalantos. Como se tantas facetas não bastassem para classificar Manuel Bandeira como poeta completo, darei a seguir três exemplos de que foi ele também exímio autor de epigramas, palavra de origem grega que em literatura exprime versos breves, satíricos, maliciosos e até picantes.

Começo com um epigrama que copiei de uma carta do poeta a Gilberto Freyre em 1927. O personagem é Renato Almeida, musicólogo, folclorista e diplomata nascido na Bahia em 1895 e radicado no Rio de Janeiro, onde faleceu em 1981. Entre os muitos livros que escreveu destacam-se o Compêndio de história da música brasileira (1948) e Inteligência do folclore (1957). Manuel Bandeira começou a implicar com Renato Almeida ainda nos anos 20. Em carta a Mário de Andrade, de 9 de abril de 1927, escreveu: Cuidado também com o Renato. Estou convencido que é ruinzinho. Na Bahia vi documentos tristes a respeito dele. E que bobagem ele escreveu sobre a terra, falando na 'sensibilidade de moderno' dele que prefere avenidas e arranha-céus ('Águas Fortes', na Revista do Brasil). Quando saiu a entrevista dele no O Jornal eu lhe mandei antes de embarcar, recebeu? fiquei tão safado que desfechei o epigrama . Eis os versos picantes do poeta: Mulata baiana um dia/ Por um mal jeito se peida./ Essa mulata é a Bahia,/ O peido Renato Almeida .

A arte de desfechar

O segundo epigrama foi desfechado verbo, como já vimos, usado pelo poeta na sexta exemplificação registrada no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: Manifestar-se com exuberância, com liberdade, desatar, irromper contra Francisco de Assis Barbosa. Nascido em 1914 em São Paulo, onde faleceu em 1981, o meu saudoso amigo Chico Barbosa viveu sempre no Rio de Janeiro, onde exerceu brilhantemente o jornalismo literário. Membro da ABL, publicou muitos livros, merecendo destaque A vida de Lima Barreto (1952).

Manuel Bandeira era padrinho de uma filha de Francisco de Assis Barbosa e em artigo de 8 de julho de 1956 intitulado Desmentido (reproduzido no volume 2 de sua obra completa Poesia e prosa) escreveu: ... andaram me atribuindo uma quadrinha desprimorosa para o meu querido compadre Francisco de Assis Barbosa, vejam só! A quadrinha era injusta, mas engraçada . E reproduziu o epigrama cujo segundo verso é o título do primeiro livro do amigo, publicado em 1934: Francisco de Assis Barbosa,/Brasileiro tipo 7,/Tanto em verso como em prosa/ Não deu, não dá nem promete .

O terceiro dos epigramas de Manuel Bandeira que desejo recordar foi desfechado contra o jornalista pernambucano Mário Melo e circulou de boca em boca no Rio de Janeiro. Com este epigrama o poeta se vingou de Mário Melo, que combateu tenazmente a ideia da inauguração no Recife de seu busto: ideia do então deputado estadual Nilo Pereira, autor de projeto de lei neste sentido, aprovado pela Assembleia Legislativa de Pernambuco. Mário Melo invocava uma lei resultante de projeto de sua autoria quando exerceu o mandato de deputado estadual (1947-1951). Essa lei proíbe nomes de pessoas vivas em ruas e praças de Pernambuco. Historiador prolífico e jornalista atuante, membro da Academia Pernambucana de Letras e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Mário Carneiro do Rego Melo (1884-1959) ignorava, embora fosse bacharel em direito, que não é lícito fazer ilações de leis proibitivas. A lei não fala em bustos, proibindo somente nomes de pessoas vivas.

Há outros mal-entendidos em relação ao caso. Contratado pelo saudoso usineiro e homem de letras paraibano Odilon Ribeiro Coutinho para fazer o busto, o que o grande escultor Celso Antonio fez foi a cabeça do poeta. Para Celso Antonio, artista moderno, bustos e hermas eram artes do passado.

A verdade é que Mário Melo tinha razões pessoais para opor-se a uma homenagem a Manuel Bandeira. Primeiro porque detestava a poesia moderna; e segundo porque, subserviente ao então interventor federal em Pernambuco Agamenon Magalhães que o nomeou, em 1938, membro do Conselho Administrativo do Estado, sinecura de que se beneficiou até o fim da ditadura Vargas, em 1945 procurava desagravá-lo em face do poema de Manuel Bandeira China Gordo : uma obra-prima digna de figurar entre as cantigas portuguesas de escárnio e mal-dizer, mas e infelizmente omitida entre os poemas de circunstância do livro Mafuá do malungo. Eis o terceiro epigrama de Manuel Bandeira: Mandei fazer uma estátua/ por um novo Donatello,/ uma estátua mais que equestre:/ eu montado em Mário Melo .

Falar bem dos mortos

Morreu Mário Melo em 24 de maio de 1959. Três dias depois, em sessão ordinária da Academia Brasileira de Letras, Manuel Bandeira teve a nobreza de fazer o elogio de quem tanto o combateu. O necrológio está no volume 97 (janeiro/junho de 1959) da Revista da Academia Brasileira de Letras: Não se estranhe que seja eu que venha pedir um voto de pesar pelo falecimento de Mário Melo. A questão do meu busto em Recife não chegou a inimizar-nos. Trocamos alguns golpes que não tiveram consequências. Foram golpes de esgrima de salão. Estou, pois, à vontade para lamentar o desaparecimento desse homem que prestou relevantes serviços à cultura de sua terra e que, após 60 anos de jornalismo, ainda escrevia com o brilho da mocidade .

Como bom humanista, Manuel Bandeira sabia que dos mortos só devemos falar bem. De mortuis nil nisi bonum.

* Biblioteconomista, autor de Alumbramentos e perplexidades, uma análise das influências na obra de Manuel Bandeira.