Ari Roitman*, JB Online
RIO - Mario Vargas Llosa tem toda uma vertente, essencial, do seu trabalho pouco conhecida pelo público sobretudo o brasileiro. É que, simultaneamente a sua extensa produção ficcional, escreveu uma obra crítica vasta e variada que já visitou com brilhantismo monstros sagrados como Flaubert, Cervantes, Borges, Garcia Márquez, Victor Hugo. Esses trabalhos, aliás nem sempre recebidos sem reservas, são amostras de uma inteligência aguda, de um texto límpido e cativante e, acima de tudo, de uma paixão pelos bons livros. Como fio condutor, uma tese, senão totalmente original, muito sólida e defendida com elegância: a ficção não é mera transcrição da realidade, mas algo que é criado para substituí-la, uma realidade outra, feita de palavras, num rito que o homem pratica desde sempre para suplantar a mediocridade e as limitações da vida cotidiana. Contar histórias é criar mundos alternativos.
Todos esses ensaios nasceram do meu entusiasmo pelo escritor , declarou. Nunca escrevi ensaios literários sobre autores que não tenham me impressionado muito, proporcionado um grande prazer, e dos quais eu não tenha aprendido muitas coisas. Prova disto é o volume El viaje a la ficción: el mundo de Juan Carlos Onetti, publicado na Espanha em novembro de 2008. Onetti (1909-1994), cujo centenário será comemorado nos próximos dias com uma intensa programação de homenagens, foi uma espécie rara no zoológico literário. Nascido em Montevidéu, de família pobre pai uruguaio e mãe brasileira, a dona Honória Borges deixou a escola aos 13 anos e teve que trabalhar nos mais diversos ofícios. Mesmo assim, produziu uma obra ficcional de uma potência única e, em 1980, recebeu o Prêmio Cervantes.
Literatura moderna
A repercussão da sua obra é impressionante. Para Julio Cortázar, ele foi simplesmente o maior romancista latino-americano ; Carlos Fuentes escreveu que os romances e contos de Onetti são as pedras fundamentais da nossa modernidade. (...) Ele deu a todos nós, seus descendentes, uma lição de inteligência narrativa, de construção sábia, de um imenso amor à imaginação literária . E Vargas Llosa resume: Onetti foi o primeiro autor de língua espanhola a fazer uma literatura absolutamente moderna . Escritor do gênero dos malditos, da espécie dos marginais, Onetti era alcoólatra, depressivo crônico, ranzinza notório e portanto inepto para a pequena concorrência do dia a dia, a disputa por espaços em que acaba vencendo o mais esperto, ou o mais simpático. Sem nenhum talento para a chamada luta pela vida, padeceu dificuldades econômicas durante a maior parte dos seus dias. Seu pessimismo e seu desamparo viscerais o transformaram num lobo solitário, avesso às panelinhas literárias e ao intercâmbio mundano de modo geral. Gauche na vida muito mais que o poeta Onetti era perseguido pelo fantasma do fracasso, mas não fazia qualquer tipo de concessão, fosse na literatura, fosse na própria vida.
Seu primeiro romance, O poço, de 1939, tem curiosas semelhanças com os livros de Camus e Sartre, que Onetti só pode ter lido depois. Tal como A náusea (1938) e O estrangeiro (1936), retrata um mundo tingido pelo pessimismo e a angústia existencial, povoado por seres revoltados, marginalizados, profundamente individualistas. Cenário e personagens que continuarão presentes ao longo de toda sua obra Juntacadáveres é seu romance mais conhecido que será publicada irregularmente nos mais de 50 anos que se seguiram. Uma obra de construção intrincada, cerrada e sempre surpreendente: Em quase todas as suas histórias, contos e romances escreve Vargas Llosa há uma complexa urdidura de mudanças de narrador, de saltos do objetivo para o subjetivo, do passado para o presente, da realidade para o fantástico, da vigília para o sonho (...). Por isso, as histórias de Onetti são de uma grande complexidade e nunca se esgotam simplesmente no que dizem .
Lado oculto da alma
Em quase todas, a mítica cidade de Santa Maria versão rioplatense, segundo Llosa, da Yoknapatawpha de Faulkner é um microcosmo sombrio da condição humana onde predominam a hipocrisia, a podridão e o vício. Onetti revela o lado oculto da alma ao coreografar, por baixo dos panos do bom-mocismo imperante, a chamada vida social. Seus temas recorrentes são a mentira, a prostituição, a loucura, a traição, o suicídio, as perversões e baixezas. É dado a uma linguagem que Vargas Llosa chama de crapulosa : aparentemente desarrumada, falsamente oral, sempre crua e cruel. Uma linguagem que não se acanha com a gíria, o chulo, a descrição de cheiros e excreções corporais, e na qual se encontra ressonâncias de Céline, uma das devoções literárias confessas, ao lado de Joyce e Faulkner.
Onetti foi preso pela ditadura militar uruguaia em 1974, por ter participado do júri de um concurso literário que premiou um conto considerado subversivo. Na cela tentou o suicídio e foi transferido para um hospital psiquiátrico, onde passou alguns meses. Quando saiu, mudou-se definitivamente para Madri, onde viveu por mais 19 anos, boa parte dos quais na cama, ensimesmado durante dias, ou com um copo de uísque e pilhas de romances policiais ao alcance da mão. Nunca mais voltou ao seu país. Diante de personalidade (personagem?) tão singular, Vargas Llosa se sai bem na cerzidura de aspectos de vida e obra, uma empresa sempre arriscada. Ao lado da visada teórica, também recorda no livro afirmações cáusticas de Onetti, exemplos de sua conhecida rabugice e até tiradas divertidas que o envolvem. Por exemplo, numa entrevista para a televisão francesa, ao ver o jornalista intrigado com o único dente que lhe restava na boca, o uruguaio explicou: Antes eu tinha uma dentadura magnífica, mas dei-a para o Vargas Llosa (para entender a ironia, veja-se na internet uma foto deste último sorrindo).
Entre dentuços e banguelas, é notável a iniciativa do escritor peruano de fazer um percurso metódico e produtivo pela obra de Onetti, mapeando a carpintaria labiríntica da sua construção. Com isso também revela, nem que seja por contraste, algo dos seus próprios procedimentos e truques de mágica literária. Como pano de fundo, uma leitura, uma admiração e uma interlocução silenciosa que se prolongam há meio século. Numa das poucas conversas que ambos tiveram, ao saber que Llosa era metódico para escrever e se impunha horários de trabalho regulares, Onetti disse a frase famosa: Vargas Llosa tem relações matrimoniais com a literatura; já as minhas, são adúlteras .
*Tradutor (de sete livros de Vargas Llosa), editor e psicanalista.