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Teatro completo de Caio Fernando Abreu é editado

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Daniel Schenker, Jornal do Brasil

RIO - Os personagens de Caio Fernando Abreu externam a necessidade de encontrar outra coisa, algo que intuem como um ponto remoto que não conseguem nominar. Esta impressão, muito presente em sua obra literária, em especial em Onde andará Dulce Veiga?, possivelmente seu melhor livro, é reafirmada, em alguma medida, em sua produção teatral, a julgar pelos textos reunidos no livro Teatro completo.

A realidade, ou pelo menos o que se convencionou denominar como sendo realidade, é evitada por muitos dos personagens, que insistem em viver numa espécie de plano paralelo. Realidade é uma coisa que ela não aguenta mais , diz Bruno em relação à mulher, Evelyn, que, após a perda do filho, se encastelou num mundo particular, em Reunião de família, adaptação de um texto de Lya Luft. Ilusão, eu já dizia cá com os meus botões, ilusão é tudo que o humano esse escombro patético necessita para continuar existindo , constata um personagem, não por acaso, denominado de Nostálgico, em Zona contaminada.

Presente arruinado

A nostalgia também desponta como um traço imperante dos personagens, que negam a realidade diante da necessidade de recuperar o irrecuperável. Eu quero o que se perdeu. Eu quero aquilo que conheço, mesmo que não exista mais. Não quero esse lugar para onde você vai, e que nem sei se existe , assume Carmem, em Zona contaminada, texto que mescla pulsões de vida e de morte ao chamar atenção para a volúpia do desejo e traz evidentes referências à Aids, doença que vitimaria Caio Fernando Abreu no decorrer dos anos 90.

Em outras peças, o autor cria personagens que louvam um passado idealizado contrastado com um presente arruinado, a exemplo de toda a descrença de Madame, em Sarau das 9 às 11. Contrapõe visões de mundo diferentes, entre os apegos à subjetividade e ao pragmatismo, como em Diálogos, e clama por um retorno ao artesanal e à natureza num contexto cada vez mais dominado pelo deslumbramento vazio em relação à tecnologia e por um crescimento urbano desordenado mensagens que lança no texto infantil A comunidade do Arco-Íris. Mas, em meio a toda a crise com a realidade, às vezes a personagem mais aérea se revela portadora das palavras mais equilibradas, caso de Mona no diálogo com o pessimista Leo em Pode ser que seja só o leiteiro lá fora: Nada é horrível, nada é maravilhoso. O seu olho daqui é que transforma tudo. O seu jeito de olhar. O que acontece é que você ainda não aprendeu a olhar .

No que se refere à estrutura dos textos, Caio Fernando Abreu passeia por formatos diversos. Na rubrica inicial de Sarau das 9 às 11, anuncia para o leitor que a primeira das três partes distintas que compõem a peça é formada por monólogos entrecruzados , tendo em vista que os personagens falam sem estabelecer diálogos. Na segunda parte, estruturada como monólogo narrativo, todo o arco de uma existência é trazido à tona, tornado presente. Na terceira, um diálogo com frases curtas ditas pelos personagens A e B, denominados apenas como uma dona de casa e seu cunhado.

Diálogos reúne conversas que poderiam ser prolongadas infinitamente, como ressalta o autor na nota que encerra o texto. Em Pode ser que seja só o leiteiro lá fora também há uma indicação de fim impreciso, além do anúncio, na história, do fim do mundo. Caio Fernando Abreu, inclusive, transforma a possível ausência de final em tema. Em Reunião de família, uma árvore foi arrancada, mas os brotos continuam a crescer; uma criança morreu, mas a mãe permanece perpetuando sua existência. A falta de molduras delimitadoras do término do texto (ou da experiência teatral) pode ser vista ainda como medida empregada para dar liberdade ao diretor da montagem. Uma recomendação que surge na rubrica de Zona contaminada, um texto que não se pretende pronto , apesar da quantidade de indicações aparentemente restritivas.

Distância

Em Reunião de família, Caio Fernando Abreu entrelaça passado e presente de maneira organizada, bem perceptível, mas faz com que os personagens, vez por outra, falem de si mesmos a partir de uma postura distanciada. Em Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, anuncia, em determinado momento, o afastamento de uma estrutura próxima do realismo, quando as circunstâncias adquirem caráter simbólico. Já no delicioso A maldição do Vale Negro, brinca com a linguagem do melodrama num texto formado por cenas curtas dispostas com perfeita noção de ritmo. O real, claro, não tem vez. Tudo é propositadamente exagerado e até os quadros mais graves, como o da loucura de Úrsula, são desarmados num estalar de dedos. No hay tiempo para explicar, Úrsula. Ni para locuras outra vez , diz a cigana Jezebel.

Teatro completo é uma publicação que surgiu de outro texto de Caio Fernando Abreu, O homem e a mancha, sua última peça, escrita dois anos antes de sua morte, como lembra o ator Marcos Breda, que capitaneou uma montagem. Bem menos conhecida do que a sua produção literária, as peças vêm rendendo espetáculos de qualidade, a exemplo das divertidas versões de A maldição do Vale Negro (principalmente a segunda, apresentada no final da década de 80).