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Mexicano Mario Bellatin explora diálogo entre biografia e obra

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Juliana Krapp, JB Online

RIO - Mario Bellatin não é um sujeito que passe despercebido. Pode estar no mais caótico dos lugares como o Sujinho, botequim de São Paulo ou na mais protocolar das cerimônias um congresso de escritores em Paris. Não importa: sua presença é marcante, iludibriável. Na mesma medida é marcante e iludibriável sua literatura, toda ela embalada em livrinhos curtos, que não costumam ultrapassar as 100 páginas, e que em geral esparramam-se mundo afora por editoras pequenas, como as da rede latino-americana cartonera ou a portenha Interzona, até que ganham os catálogos das gigantes, como a Alfaguara e a Tusquets.

Mexicano, filho de pais peruanos, 49 anos e mais de 15 novelas publicadas, Bellatin é um mutante. Faz questão de sê-lo. Costuma aparecer todo de preto, careca reluzente; ou então usando uma espécie de bata comprida, que muita gente crê um vestido ou uma indumentária misteriosa de monge. Na falta do antebraço direito, deformação de nascença, intercala próteses artísticas. Um dia, carrega um gancho; no outro, tem na extremidade uma espécie de flor metálica. Está envolvido, junto com o artista plástico Aldo Chaparro, no projeto de fazer próteses mais funcionais , que tenham acopladas a si um celular, um i-pod ou uma navalha suíça, num entusiasmo que o acomete desde que despachou seu antigo antebraço de carbono peça que o acompanhara anos a fio no Rio Ganges, na Índia, e o viu ir embora boiando ao lado de outros cadáveres do rito fúnebre (embora às vezes ele assegure que o perdeu, na verdade, após enfrentar uma tsunami nas Filipinas).

É mutante também porque cria esses universos cerrados e estranhos, regidos por leis próprias, onde o ar aparece tão rarefeito; onde os personagens, não raro, são mutantes como ele, e onde exerce sua sina assumida de buscar a maior proximidade possível com o silêncio e a ausência. Soy Mario Bellatin y odio narrar , diz, em um de seus arroubos mais famosos, no depoimento Underwood portátil modelo 1915.

Sem nhenhenhém

No Brasil, Bellatin demorou a chegar. Salão de beleza, uma de suas novelas mais elogiadas, foi publicada em 2007 pela pequena Leitura XXI, uma editora de Porto Alegre. Passou quase em branco. Menos em branco, porém, foi sua vinda no mesmo ano à Balada Literária o festival que acontece anualmente em São Paulo e o Laboratório de Escritura Coletiva que ofereceu no Centro Cultural B_arco, também na capital paulista, no início de 2008, ao lado de Maria Alzira Brum.

Ao debater com ele, me sentia de frente ao próprio Roberto Bolaño conta Marcelino Freire, organizador da Balada. Ele é pura contundência. Não tem nada de frígido, nada de nhenhenhém, nada de entrega parcial.

Desde então, Bellatin vive um flerte com o Brasil. Escreveu Los fantasmas del massagista, que integra a coletânea de contos baseados no cancioneiro de Chico Buarque, organizada por Ronaldo Bressane e prevista para vir a lume no fim do ano, pela Companhia das Letras. A história assinada pelo mexicano se passa na Vila Madalena, onde uma famosa cantora se vê obrigada a interromper a carreira depois que inclui Construção em seu repertório. A música a leva a um estado no qual é impossível cantar mais.

Fã de Chico Buarque desde a adolescência, Bellatin deve esbarrar com o ídolo em julho, na 7ª Festa Literária Internacional de Paraty, onde ambos são algumas das principais atrações. Bellatin lança na cidade histórica seu livro Flores, editado pela CosacNaify, e divide uma mesa com Cristovão Tezza, com mediação de Joca Reiners Terron. Vão falar sobre o caráter auto-biográfico refletido (mesmo que de forma enviesada) em suas obras.

Flores, que venceu em 2001 o prêmio Xavier Villaurrutia, do México, é um livro fragmentado, no qual os pequenos capítulos têm nomes como Rosa , Trevo , Lírio , e compõem, juntos, uma estranha mandala. Os personagens são vítimas de deformações congênitas, ocasionadas pelo uso de um medicamento o que remete o leitor imediatamente à biografia do próprio Bellatin, que, acredita-se, foi vítima da Talidomida, remédio que provocou má-formações em fetos nos anos 50 e 60.

Porém, seja a história da Talidomida, a do braço mecânico perdido ou tantas outras, não se sabe o que é verdade na trajetória de Bellatin. Num eterno jogo que explora o diálogo entre biografia e obra, o mexicano ludibria seu leitor-espectador, enquanto assegura: isso não é uma brincadeira.

É como se ele mesmo fosse uma outra dimensão de sua ficção explica Terron, leitor antigo e voraz do mexicano.

Pitol de saias

Convidado pelo governo francês a organizar um congresso de escritores mexicanos em Paris, Mario Bellatin fez uma de suas travessuras mais famosas. Ao grupo de acadêmicos europeus que esperava a nata da narrativa mexicana, surpreendeu que Sergio Pitol fosse uma senhora de vestido, e que José Agustín parecesse tão jovem. A farsa não tardou a ser revelada: em vez de escritores autênticos, Bellatin havia levado dublês, gente que passou seis meses em convívio com os autores originais, decorando seus projetos literários e suas opiniões, para apresentá-los ipsis litteris à plateia estupefata.

Ante a revolta dos acadêmicos, Bellatin não se conformou: se estavam diante das ideias legítimas dos autores, por que se incomodar com a ausência de seus corpos?

Kawabata?

Outra provocação famosa aconteceu quando teve encomendada, pelo jornal argentino La Nación, uma resenha sobre o livro Kioto, do japonês Yasunari Kawabata. O mexicano teve a ideia de copiar trechos de resenhas publicadas sobre seus próprios livros, e se deu ao único trabalho de substituir o nome Mario Bellatin pelo de Yasunari Kawabata , e os de seus livros por Kioto. O artigo foi aclamado e chamado de brilhante , até que o próprio Bellatin revelou a troca, alegando que explicara de antemão o uso da técnica de copypaste em uma nota de pé de página da resenha, deixada de fora, inexplicavelmente, pelo jornal.

Em um texto divulgado na internet, ele justifica a atitude: Creio que se trata de uma reapropriação... Assim como os críticos se sentiram com o direito de escrever sobre os meus livros, recuperei as palavras que meus livros geraram. A proposta perde validade? Isso me faz recordar o asco que nos causa um pelo solto e o prazer de uma cabeleira sedosa .

Meses antes, fez com que uma diretora teatral encenasse um texto de Samuel Beckett, que era na verdade dele próprio. Da mesma forma, em seu livro Jacobo el mutante, o protagonista é um estudioso da obra do escritor austríaco Joseph Roth. Acontece que Bellatin parte de um romance inexistente de Roth, La Frontera, para descrever a estranha mutação pela qual passa Jacobo, um rabino heterodoxo. Em outra novela, Shiki Nagaoka: una nariz de ficción, o protagonista é um escritor conhecido menos por sua obra do que por seu nariz descomunal.

Escola Dinâmica

Questionar o conceito de autoralidade é uma das atividades prediletas de Bellatin, empenhado diariamente num quebra-quebra de estereótipos. Não à toa é o criador e diretor da Escola Dinâmica de Escritores, no México, cuja premissa básica é o polêmico conceito É proibido escrever . Em suas instalações, 30 pessoas passam dois anos vivendo 52 experiências , costuma dizer o mexicano, para que se desfaça aquilo que conhecemos como literatura e se forme um corpo no qual o exercício da escritura assuma a categoria de uma prática artística , explica, no artigo A arte de ensinar a escrever , traduzido por Maria Alzira Brum.

Por isso, Bellatin não dá aulas na Escola. Quem assume a coordenação das experiências é um grupo de psicanalistas, críticos literários e estudiosos da arte em geral. Dizem as más línguas, aliás, que o escritor mexicano pouco aparece na Escola (fechada temporariamente). Já nos laboratórios de escrita que ministra mundo afora, trata de demolir, ele mesmo, os conceitos comuns que rondam o meio literário.

O primeiro dia foi inteiro de boicote às ideias descreve o advogado e fotógrafo Eduardo Muylaert, participante do laboratório em São Paulo que deu origem ao micro-romance coletivo Circunvago, publicado pela editora Demônio Negro. Ele faz uma enorme desconstrução, e desconstrói a própria noção de seminário. Tudo parece um pouco caótico.

Mas ele é seríssimo garante a professora e escritora Luciana Pennah, que também participou do laboratório. Prega peças o tempo todo, na literatura e na vida, porém não o faz por brincadeira.

Sério e performático. Bellatin, ele próprio uma ficção, lança mão de muitos recursos para construir sua poética num esforço vigoroso por anular qualquer tipo de excesso. Muitas vezes, ele define seu trabalho como uma busca constante de escrever sem escrever , ressaltando mais os vazios e as omissões, as carências e as faltas. Por isso sua prosa é tão econômica quanto angustiante, seca e irredutível.

Perto de Bellatin, o Graciliano Ramos parece barroco compara Joca Terron.

Fotógrafo

Eu preferia que o espanhol fosse um idioma mais compacto , disse Bellatin à revista espanhola Quórum, acrescentando: Eu cuido para que a língua quase não exista, para que seja só um veículo o mais plano e o mais transparente possível .

Na busca pela transparência da linguagem, muitas vezes substitui as palavras pelas imagens em alguns de seus livros há, em um movimento parecido ao do alemão W.G. Sebald, a presença de fotografias e reproduções de documentos, registros de alguma forma imagéticos. Na prática, ele não larga sua velha câmera, ainda de filme (em suas estadas em São Paulo, fez ensaios noturnos).

O texto literário, a fotografia, a performance e a Escola Dinâmica de Escritores são fractals de um processo criativo em constante transmutação em projeto estético. A ficção é matéria e ferramenta de um pensamento que cria ao mesmo tempo que explora, descobre, intervém relata a escritora e tradutora Maria Alzira, sua parceira no laboratório paulista e que já teve uma participação especial na Escola Dinâmica.

As obras que li de Bellatin me mostraram um escritor menos preocupado em contar uma história que emocione o leitor do que em revelar as estruturas por trás da ficção, e dessa forma, ele desestrutura também a realidade. O romance Lecciones para una liebre muerta, por exemplo, praticamente monta uma engenhoca de manufatura de narrativas, e dessa máquina amalucada sai uma chuva de histórias misturando artistas plásticos e escritores com personagens recorrentes na literatura, como o Golem. Bellatin, assim como o catalão Enrique Vila-Matas, é um desses escritores que vivem da tensão entre o real e o ficcional conta o escritor Antônio Xerxenesky, outro fã brasileiro.

Em meio a essa tensão, Bellatin é, como descreve Paco Gomez, da Eterna Cadência, pequena livraria e editora de Buenos Aires, uma buena onda . E um escorregadio. Até o fechamento dessa edição, seu paradeiro era incerto. Apresentou-se no início da semana em Assunção, no Paraguai, e depois, supostamente, não retornou mais ao México. O escritor peruano Iván Thays chegou a especular em seu blog: Foi visto nadando com tartarugas na Costa Rica, tirando fotos com sua câmera Diana no Chaco, navegando no Ganges atrás de um barco fúnebre, assistindo à primeira temporada de In treatment no loft nova-iorquino de seu amigo fotógrafo famoso . Há quem diga ainda que ele já está no Brasil, perto de Paraty, ou que está treinando o dublê que o irá representar na Flip. A única coisa confirmada é que Bellatin escreve, no momento, a biografia da Frida Kahlo. Mas não a pintora: trata-se de uma cozinheira que vive na Cidade do México e que é a cara da artista.