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Livro conta a história da paciente homossexual de Sigmund Freud

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Guilherme Gutman*, JB Online

RIO - Na orelha do livro Desejos secretos, de Ines Rieder e Diana Voigt, pode-se ler o seguinte: Jovem homossexual numa época em que vigoravam inúmeros tabus, Sidonie Csillag foi imortalizada por Sigmund Freud num ensaio de 1920 denominado 'Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina' . É o suficiente para que se tenha um vislumbre de toda a tragédia implicada no entrelaçamento entre a vida de Sidonie e aquilo que Freud escreveu sobre uma das pacientes que, como outras, tornou célebres. Mas o que Sidonie tem em comum com Anna O., Emmy Von N., Miss Lucy R., Katharina, Elisabeth Von R. e, sobretudo, com Dora?

Imediatamente, o fato de terem sido observadas por Freud, que lhes dedicou textos clínico-biográficos. Mas é preciso lembrar que Anna O. foi o nome fictício dado por Freud para Bertha Pappenheim (1859-1936), assim como Sidonie C. o nome escolhido para Margarethe Csonka (1909-1999), e, o que parece mais importante, entre Gretl (apelido familiar de Margarethe) e a jovem homossexual , há um abismo. Freud faz um recorte interessado de Gretl, o recorte clínico de uma vida ou, como se costuma dizer entre psiquiatras, psicólogos e psicanalistas, a montagem de um caso. E como toda vida ultrapassa aquela impressa num documento clínico, surge o interesse e a necessidade de ampliar o círculo do que se sabe sobre o paciente em questão.

Encruzilhada

O nó está, no entanto, no fato de que, sem Freud, a vida de Gretl não teria interesse público, e é dessa encruzilhada que brota o livro de Rieder e Voigt. O que inicialmente gera interesse pela vida de Sidonie (e ela mesma o asseverava) é o fato de ter sido paciente de Freud. Ao mesmo tempo, as duas biógrafas procuram defender a ideia de que sua vida apresenta um interesse extraordinário e, em alguma medida, independente de Freud.

Num certo sentido, elas têm razão, tendo em vista a vida atribulada de Sidonie, seu feminismo, seu caráter de testemunha do século 20 etc. Mas será possível desvincular, senão o valor, o sabor especial dessa vida ao fato de ter sido atravessada pelo mais famoso vienense novecentista? Ou, tomando a coisa sob outro ângulo, será possível pensar algum fato ou vida sem levar em conta a inflexão na cultura à qual correspondeu a invenção da psicanálise?

Pensemos na possibilidade de que Sidonie fosse uma anônima, no sentido de não ter deitado no famoso divã da Bergasse, 19. Há um relato biográfico nesses moldes, isto é, de uma vida que, embora notável, talvez desaparecesse na poeira do tempo, não fosse o fato de que sintetiza elementos decisivos de uma época. Trata-se do livro Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo, de Hannah Arendt. Mas aí, se é possível algum tipo de comparação entre as duas empreitadas biográficas, a balança pende fortemente para o livro de Arendt, sobretudo pela escolha da personagem e pelo fato de fazer de seu percurso de vida uma reflexão brilhante sobre temas que parecem ultrapassar as circunstâncias mais estritamente factuais da biografada; sem dúvida efeitos de sua estatura intelectual. Enquanto que, no livro de Rieder e Voigt, as ligeiras reflexões porventura presentes não chegam a fazer da biografia algo muito distante de qualquer outra do gênero. A grande diferença, então, é a de que o livro de Arendt pensa uma época, enquanto Desejos secretos não alcança o mesmo resultado porque, se a personagem central teve uma vida de algum modo incomum e do tamanho de um século, sua história não chega a lançar luzes inéditas sobre seu tempo. A despeito disso, justiça seja feita, temos uma história bem documentada, escrita com competência e gosto, além de inegavelmente atraente para todos aqueles interessados em psicanálise, em história, em feminismo, em homoerotismo ou, simplesmente em uma boa biografia, com seus típicos ingredientes ricos e sortidos. Um dado curioso, e de especial interesse para os leitores brasileiros, é o fato de que Sidonie chegou a morar no Brasil e em Cuba.

Assim, para um público amplo, o maior valor do livro está na história bem contada de uma vida cativante e acrescida daquele tipo de interesse gerado toda vez que a vida em questão obteve em sua época alguma publicidade. É neste ponto que reencontramos Freud. Naturalmente o livro é leitura recomendada a psicanalistas, de preferência cotejada com o texto freudiano. Vale especial atenção ao momento em que se aborda a tentativa de suicídio de Sidonie ponto crucial na sustentação das hipóteses clínicas de Freud (pode-se também recorrer ao Seminário 11 de Lacan, no qual o tópico é revisitado).

É colocando lado a lado Desejos secretos e Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina que o leitor obterá as mais altas recompensas intelectuais, que a biografia isoladamente não será capaz de oferecer. Aqueles pouco familiarizados com a literatura psicanalítica nada têm a temer: Freud escrevia de modo agradável e com muita clareza; e particularmente em seus casos clínicos torna-se quase possível lê-los como quem lê um conto, novela ou romance.

Análise da transferência

Aos psicanalistas e aos não psicanalistas vale lembrar que na montagem de um caso que, como vimos, é também a montagem de uma história de vida tanto quanto Sidonie C., Freud é também personagem. Embora na maior parte do tempo silencioso, ou recoberto pela voz narrativa, eventualmente adentra a cena, com falas e condutas que revelam um pouco do modo como trabalhava. No caso em questão, sua aparição dá-se sobretudo na análise da transferência aliás, ponto de discordância entre os textos em paralelo mais especificamente quando Sidonie cria (ou recria) sonhos que supostamente agradariam Freud (e, por extensão, o pai). Mas é preciso ler a biografia de Sidonie para saber algo do que Freud sentia por ela. O que equivale a dizer: é só juntando os dois textos que temos um diálogo entre os personagens; entre ficção e realidade. Quando, por razões técnicas, um Freud de 64 anos decidiu interromper o tratamento de sua jovem paciente teria dito no momento da despedida: A senhora tem olhos tão astuciosos. Não gostaria de encontrá-la nesta vida como inimigo . Talvez tenha sido a única fala dele que Sidonie experimentou como algo que tenha lhe afetado de alguma forma.

* Psicanalista e professor do departamento de psicologia da PUC-Rio