Felipe Fortuna, colunista, JB Online
RIO - Concisos, como se buscassem na brevidade maior eficiência (less is more), muitas vezes autobiográficos assim podem ser alinhados O prazer do texto (1973) e A literatura em perigo (2007).
O primeiro livro, de Roland Barthes, se apresenta como uma articulação de parágrafos mais ou menos autônomos, na tentativa de surpreender o leitor do texto no momento em que experimenta prazer com a leitura. Dialeticamente, busca também o escritor que, experimentando prazer no ato da escrita, tenta provocar prazer no leitor.
No segundo livro, de Tzvetan Todorov, a literatura é defendida como um bem libertador: ao se perguntar por que a ama, o autor confirma: Porque ela me ajuda a viver . Ex-aluno de Roland Barthes e havendo perseguido sua integração progressiva à sociedade francesa , o crítico búlgaro, saído de um país totalitário, encontrou na literatura uma forma de resistência estética e política à educação que recebera.
Se a literatura ajuda a viver é porque, no caso de Tzvetan Todorov, o verbo viver possui sentidos simultâneos a vida espiritual, a sobrevivência material, o escape à opressão política. O que pode explicar, porém jamais justificar, a sequência de clichês e platitudes que o crítico escreve, ao longo do livro, sobre a arte que ama: A literatura abre ao infinito esta possibilidade de interação com os outros e nos enriquece portanto infinitamente .
O tom é celebratório e edificante: Longe de ser uma simples amenidade, uma distração reservada às pessoas educadas, [a literatura] permite a cada um responder melhor à sua vocação de ser humano . É tamanho o discurso laudatório e tão manifesta a opção do crítico por uma literatura de características consoladoras e até místicas que o leitor de A literatura em perigo é forçado a perguntar: mas e a pintura, a música, e as demais artes, para que serviriam?
Em transe com sua própria percepção sobre o valor da literatura, Tzvetan Todorov percebe com alguma surpresa que o papel eminente que eu atribuía à literatura não era reconhecido por todos . Sua perplexidade está ilustrada por uma reflexão sobre o currículo escolar de literatura na França, em 2000, que, segundo entende, dá maior peso ao que os críticos formulam do que à leitura das obras literárias.
Aqui volto ao contraponto que sugeri com O prazer do texto, livro nunca mencionado em A literatura em perigo. Pois Roland Barthes explica que um francês em cada dois não lê (portanto, metade da França se priva do prazer do texto ). E continua: Só deploramos esta desgraça nacional de um ponto de vista humanista, como se, desdenhando o livro, os franceses renunciassem apenas a um bem moral, a um valor nobre . Para ele, ninguém reclama dos prazeres aos quais as sociedades objetam ou renunciam: existe um obscurantismo do prazer . Encontra-se nessa justa catilinária de Roland Barthes, embora formulada há mais de três décadas, a revelação de um defeito significativo de A literatura em perigo: não ler é não experimentar o prazer do texto, bem mais do que estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos conduzir em direção aos outros seres humanos em torno de nós (...) , e coisas assim, como entende o crítico búlgaro.
É bem possível, por outro lado, que muitos concordem com Tzvetan Todorov quando afirma que a literatura tem um papel vital a desempenhar embora a frase esteja longe de atrair consenso. O que parece definitivamente inaceitável, contudo, é a afirmação a seguir: Mas para isso é preciso tomá-la no sentido largo e forte que prevaleceu na Europa até o século 19 e que é marginalizado hoje .
O professor búlgaro-francês está seguramente repleto de boas intenções, mas não poderia defender o roman fleuve, o folhetim de jornal e, muito menos, as formas de expressão que as sociedades europeias privilegiaram em cada época. Ao contrário do que acredita Tzvetan Todorov, boa parte da melhor literatura, a partir do século 20, desafiou ou desprezou qualquer intenção de dar sentido à vida , e preferiu, de fato, expor o desespero e as situações-limite. Isso não faz de Franz Kafka, Samuel Beckett e Eugène Ionesco, por exemplo, escritores a partir dos quais se tornou impossível conhecer o mundo.
Em A literatura em perigo, muitas vezes se tem a impressão de que as críticas dirigidas ao ensino da literatura nas escolas francesas se misturam ao lamento sobre a possível irrelevância da literatura nas sociedades atuais. Mas essa irrelevância, convenha-se, não dependeria unicamente das distorções dos currículos. Também impressiona que Tzvetan Todorov sequer faça alusão às novas linguagens eletrônicas e à difusão da literatura por outros meios que não apenas o livro. A sua defesa por um sentido de literatura prevalecente até o século 19, quando contrastada à omissão dos recursos tecnológicos, parece ainda mais anacrônica e sem finalidade. Além de uma percepção da literatura tendente ao pedagógico (capaz, nas suas palavras, de corrigir nosso egocentrismo), não se consegue saber qual ou quais são os autores preferidos do crítico informação que parece crucial para a compreensão sobre literatura.
É bem verdade que, fiel à visão regenerativa, a prosa incandescente de Marina Tsvetáieva é a única que consegue ler quando se encontra mergulhado na tristeza ... Aqui se perdeu, uma vez mais, a lição do mestre de O prazer do texto, que apontava a obra de Marcel Proust como a obra de referência (...), a mandala de toda a cosmogonia literária . O romancista está presente, para ele, como uma lembrança circular , e representa a impossibilidade de viver de fora do texto infinito .
Que falta faz O prazer do texto num livro como A literatura em perigo. Pois o texto literário é mesmo um ponto focal sempre a reinventar o seu cânone: e só estaria em perigo se o seu prestígio dependesse de uma forma já consagrada, localizada entre o totem e o tabu.