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Em contos, Glauco Mattoso oblitera a banalização da violência

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André de Leones*, JB Online

RIO - Em parte do meio literário brasileiro, composto por ex-monges, freiras e futuros(as) virgens, um livro como Contos hediondos (Demônio negro, 96 páginas,

preço a definir), de Glauco Mattoso, será visto como injurioso, apelativo, nojento, geração 90 e infame.

Mas a verdade é outra: levando-se em conta que existem basicamente dois tipos de literatura, a boa e a ruim, que importa não apenas o que é narrado, mas sobretudo como é narrado, e que a cretinice e o patrulhamento contra eventuais desvios são moedas correntes, o fato de que um livro como Contos hediondos venha à luz é digno de ser celebrado.

Veja bem: não se está aqui defendendo uma literatura lanhada por escatologias e brutalidades mil; o que se está dizendo é que o fato de um texto (conto, poema, romance) descrever e/ou tratar de certas violências não o torna, por si só, bom ou ruim. Conforme diriam alguns, o buraco é (quase) sempre mais embaixo.

Assim, na medida em que os contos do livro saltam diretamente na jugular do leitor, seria muito fácil enquadrá-lo em um certo tipo de literatura marginal . Os tolos que fazem um julgamento desses não se lembram de que Rabelais esteve entre nós já há uns bons cinco séculos.

Logo, em se tratando desse tipo de abordagem literária, não há nada de exatamente novo, nem mesmo a caretice dos que viram o rosto, incomodados. Interessa, portanto, o modo como Mattoso se movimenta no jogo, e ele se movimenta maravilhosamente bem, com graça e leveza insuspeitas, não obstante o peso dos temas abordados.

Para aqueles que costumam mudar de calçada quando se deparam com esse tipo de literatura, alegando saber sobre essas coisas todos os dias, pelos jornais , é interessante apontar a maneira como a narrativa que abre o livro, Mundo cadela , coloca em xeque justamente a ideia de realismo e objetividade exibida por certos órgãos de imprensa e programas jornalísticos televisivos e corroborada pelos nossos preconceitos. A brutalização de duas garotas por uma gangue estrutura-se, literariamente, nas fraturas do discurso recheado de senso comum e assentado sobre frases feitas dos noticiários.

Ao narrar com todos os detalhes e usando de uma linguagem crua a tragédia sofrida pelas moças nas mãos dos bandidos, Mattoso rejeita toda e qualquer banalização e devolve àquele ato a crueldade que lhe é intrínseca. Fazendo uso desse expediente, o autor chama a atenção do leitor para algo que, de tão pisado e repisado, havia se tornado ordinário, comum.

A violência, portanto, ganha uma nova ressonância, readquire o caráter de coisa extraordinária, chocante, repulsiva e absurda que nunca deveria ter perdido aos nossos olhos.

Essa sensação perpassa todos os oito contos que integram o volume, um deles ( Te vi na TV ) escrito em parceria com Alexandre Coimbra Gomes. Do início ao fim de Contos hediondos, nota-se uma espécie de redimensionamento das coisas, como se, por obra e graça de um artista, o horror recuperasse o seu lugar de direito em nossos imaginários alquebrados.

Não se trata de algo meramente construtivo ou destrutivo , mas antes de um entendimento do poder que a literatura ainda possui ou deveria possuir de devolver o terror ao que é aterrorizante, de chamar as coisas pelos devidos nomes, de enxergar o mundo sem o filtro do lugar-comum, da irreflexão e da banalidade. Mattoso, portanto, devolve-nos a possibilidade do choque.

Nesse sentido, mesmo a subversão (e não releitura , por favor) do machadiano A cartomante perpetrada em O podomante é condizente com o teor do livro, na medida em que Mattoso troca, literalmente, as mãos pelos pés e presenteia o leitor com a ideia belissimamente incômoda de que, afinal, somos todos voluntariamente cegos.

*Autor do romance Hoje está um dia morto e do volume de contos Paz na terra entre os monstros, ambos lançados pela Record.