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Sai a biografia definitiva de John Lennon

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Ricardo Gonzalez, Jornal do Brasil

RIO - Zenjiro (avô de Yoko Ono) havia nascido até no mesmo dia de John. A

única coisa que, aparentemente, o marcava como de uma cultura

diferente e de tempos mais perigosos foi o seu destino nas mãos de um

jovem que professava admirá-lo. John ficou fascinado pela foto de

Zenjiro que especialmente desde sua conversão às roupas e maneiras

japonesas parecia ter uma semelhança mais do que passageira consigo

mesmo.

Esse sou eu numa vida anterior disse ele a Yoko.

Não diga isto replicou ela. Ele foi assassinado.

De duas, uma: ou John Lennon aprontou muito numa vida anterior e, em

troca, foi predestinado a ser assassinado nas seguintes, como conta o trecho acima, ou o pacto previa que ele teria o mundo a seus pés, mas

sempre perderia tudo o que mais prezava, até a vida. A biografia John

Lennon a vida, do jornalista Philip Norman , com tradução de Roberto Muggiati, mostra com detalhes, para deleite dos fãs dos Beatles e de Lennon, os altos e baixos do ídolo pop, com ênfase nos períodos pré e pós-beatlemania (especialmente os últimos, sempre pouco comentados em obras sobre Lennon).

Não é um livro sobre música, pode esquecer. É um bem elaborado relato

sobre a personalidade de um dos artista que mais influenciaram a

cultura dos anos 60 até hoje.

Se o número 9 sempre apareceu explicitamente na vida do roqueiro, há um outro número subliminarmente marcante em sua vida, para o lado,

digamos, mau: o número 2. Lennon sempre precisou de uma segunda pessoa

para instigá-lo, servir-lhe de apoio, amá-lo, fazê-lo seguir em

frente. E, desgraçadamente para ele, esse número 2 sempre voltava a

ser 1 quando as coisas começavam a funcionar.

A divisão na vida de Lennon começou no dia em que, com seis anos, teve

de decidir entre ficar com o pai, o marinheiro Alfred, ou a mãe,

Julia: Se alguém quisesse rachar uma criança pequena ao meio, não

havia melhor maneira. John aproximou-se de Alf e tomou sua mão; então,

quando Julia se virou de novo, ele entrou em pânico e correu atrás

dela, gritando para que esperasse e gritando ao pai que viesse também.

Mas, paralisado uma vez mais por sua autocomiseração fatalista, Alf

ficou grudado na cadeira. Julia e John deixaram a casa , relata o

autor.

A primeira perda, a do pai, foi certamente a mais arrastada: John

viveu durante anos afastado de Alfred, mas houve tentativas de

reaproximação, que quase nunca deram certo numa delas, uma passagem

tocante que ainda não havia sido descrita em biografias: em 1967,

voltando de uma saída noturna, ele encostou a cabeça no ombro do pai,

no banco de trás do carro, adormeceu e, sem perceber, recebeu um

cafuné de Alfred, talvez o momento de maior carinho entre os dois em

toda a vida. Contraste absoluto com uma briga entre os dois, anos

depois, em que Alfred chegou a pensar que o filho poderia matá-lo.

A partir daquela escolha de Sofia às avessas entre o pai e a mãe,

em 1946 John teve uma sequência de perdas sempre bem encadeada na

obra de Norman, com a compensação de ter se tornado um ícone da música

moderna. Primeiro foi o tio George, marido da tia Mimi (irmã de

Julia), quem de fato criou e educou John Lennon. Diferentemente de

Mimi, sempre austera, George permitiu ao jovem colocar para fora seu

lado artístico e arteiro asas que foram temporariamente cortadas

pela morte, à qual John reagiria com gargalhadas histéricas. Depois

foi a própria Julia, atropelada quando o filho ia completar 18 anos, e

que se foi justamente no momento em que eles estavam mais próximos.

Pouco depois, a perda foi daquele que poderia vir a ser o quinto

beatle, Stuart Sutcliffe, que morreu antes de a banda acontecer

aqui, novamente, as gargalhadas.

O dado novo na obra: John teria tido

participação direta na morte. Até então, as versões de todas as

biografias do Beatles davam conta de que, após levar uma surra de

marinheiros depois de uma apresentação em Hamburgo, Stuart sofreu com a formação de um coágulo no cérebro, que lhe causou a morte quando estourou. Segundo a biografia recém-lançada, o tal coágulo pode ter se formado semanas depois, quando John, inexplicavelmente, surrou o amigo num acesso de fúria. Segundo o relato de familiares de Stuart,

colhidos recentemente, John carregou aquela culpa até a morte.

Em 1967 foi a vez de Brian Epstein, o empresário dos Beatles, partir

após uma grande ingestão de calmantes e barbitúricos. Um perda em dose

quase dupla, pois sem o pilar que Epstein representava, John começou a

perder sua banda. Isso aconteceu em definitivo quando ele decidiu

trocar o que sobrara de sua relação com os três talentosos amigos

Paul, George e Ringo por um casamento com a artista plástica japonesa

Yoko Ono, em 1969 um matrimônio um tanto diferente do convencional

no sentido de que os dois passavam juntos 24 horas por dia, o que não

deixava espaço para mais nada ou ninguém. Isso sem contar os dois

abortos sofridos por Yoko antes do nascimento, enfim, de Sean Lennon,

em 1975.

Há outras passagens na obra que realçam as dicotomias da alma de John

Lennon, muitas vezes explicitadas pelo próprio músico. Parte de mim é

um monge, parte é uma pulga de circo , comentou ele sobre sua relação

com o palco. Nos capítulos que relatam a época em que John já era

quase adulto, mas ainda não famoso, ele se dividia entre as grandes

bebedeiras com o amigo Jeff Mohammed e os momentos de reflexão e

introspecção com Stuar Sutcliffe.

A relação com Paul McCartney, talvez a melhor parceria da música pop

de todos os tempos, também entra na lista dos sentimentos divididos de

John Lennon. Ali um completava o outro. Como relata o autor, John era

cáustico no início e depois ficava doce com as pessoas. Já Paul era

sempre amistoso de início, e depois endurecia se as coisas não

funcionassem a contento. Yoko também corrobora a tese das divisões e

do número dois ao comentar, sobre o casamento: Éramos duas metades e

juntos somos, agora, um todo .

Tais divisões teriam um caminho natural e previsível: o divã. Outro

ponto alto da biografia é a descrição da terapia de Lennon. Foi em

1970, quando ele estava lançando o primeiro álbum solo de música

sim, porque os três primeiros, com Yoko, foram três bobagens

experimentais, e o ao vivo em Toronto, com Eric Clapton, Klaus Voorman e Alan White, só tem um lado, o outro são berros da japonesa.

Atormentado, entre outras coisas, pela síndrome de abstinência a que

heroicamente se submetia para se livrar das drogas Lennon procurou o

conceituado Arthur Janov. Ele fala no grande efeito que a teoria do

grito primal de Janov teve em sua vida. Mas o efeito bom, se é que

houve de fato, foi apenas o fato de ele ter sido analisado o que,

entre outras coisas, transformou as gargalhadas histéricas pelas

mortes de tio George e Stu em lágrimas que curam.

A divisão ou melhor, o trincamento na alma de John provocou um

relato dramático de Janov sobre seu analisado: O nível de seu

sofrimento era enorme. O maior que já tinha visto. Ele era quase

completamente disfuncional. Não conseguia sair de casa, mal saía do

quarto. Não tinha defesas, estava desmoronando, não passava de uma

grande bola de dor. Esta pessoa era alguém que o mundo inteiro

adorava, mas isto não fazia a menor diferença. No centro de toda

aquela fama, riqueza e adulação, estava apenas um pequeno menino

solitário .

Fim das divisões: a morte

Uma vida brinda os fãs que não são ligados apenas na riquíssima obra

musical de Lennon com vários aspectos pouco comentados até aqui sobre

seu lado sexual. A começar pelo episódio em que, já adolescente,

deitou-se um dia no colo da mãe e, ao esbarrar com a mão em um seio de

Julia, ficou excitado e teve o impulso de prosseguir e, quem sabe, ter uma relação sexual com ela. Mas se conteve e ficou só na dúvida sobre

o que teria acontecido.

Outro relato é sobre as férias que ele e Brian Epstein, homossexual

assumido, tiraram juntos na Espanha, em 1963, no auge da beatlemania.

Embora John não tivesse qualquer atração física pelo empresário,

acabou cedendo às pressões e tentações naquele verão. O livro ainda

ousa, de passagem, colocar em discussão uma suposta paixão enrustida

de Lennon por seu mais intenso parceiro de trabalho, Paul McCartney.

É apenas uma tese, mas que deixa de ser absurda quando se observa a

reação de ambos após a separação oficial da banda uma fúria

refletida em provocações e ofensas mútuas via música, típica de um

casal que acaba mal um relacionamento intenso.

Além dos aspectos sexuais e psicológicos, Norman brinda o público com riqueza de detalhes da infância e da adolescência de Lennon, a fase em

que se preparou para ser um roqueiro, e os belos momentos que

sucederam o nascimento do segundo filho (o único com Yoko). Foram os

cinco últimos anos de vida de John, dedicados quase que inteiramente a

ver o filho crescer, e a se livrar, com isso, do trauma de ter feito o

oposto com o primogênito, Julian.

O relato consegue provocar angústia nos leitores que sabem o desfecho

trágico daquele flash de felicidade plena do músico, certamente pela

primeira vez em sua vida de divisões. A devoção a Sean era tamanha,

que naquele 8 de dezembro de 1980, em que o tempo deveria ter parado,

John saiu do estúdio e foi ao prédio em que morava, o Dakota, apenas

para colocá-lo para dormir, antes de voltar a sair para jantar. Não

chegou a ver Sean. As balas disparadas por Mark Chapman o mataram

antes.

Mesmo para quem já conhece bem ou é fã de Lennon, o livro será

degustado com prazer. E para a garotada que esteja chegando agora ao

universo beatle, ou queira ter um bom retrato do que foi o cenário pop

dos anos 1960 e 1970, recomenda-se ler ouvindo as músicas dos Beatles

e do próprio John no i-Pod que o autor não nos ouça, mas John Lennon

é muito melhor ouvido do que lido. Para entrar mais no clima o ideal

era uma vitrola e os vinis Please, please me, Rubber soul, White

Album, John Lennon/Plastic Ono Band, Imagine e Double fantasy. Mas

vinis e vitrolas, como Lennon, infelizmente também morreram.