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Quadrinista americano Nick Bertozzi fala de seu gibi 'Salon'

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Alexandre Werneck, JB Online

RIO - A história da arte é pintada com experiências de enquadramento. Telas em molduras, artistas em escolas, obras em períodos. Correndo o risco de se fazer um jogo de palavras que talvez agradasse a Marcel Duchamp aquele que tentou enquadrar um urinol em um museu não se pode negar que Salon é uma experiência de enquadramento, um projeto de fazer da arte uma história. Em quadrinhos.

Sim, um gibi. Que reescreve o nascimento do cubismo, o movimento artístico fundado pelo espanhol Pablo Picasso e pelo francês Georges Braque, fazendo um retrato de sua paisagem, a Paris de 1907, em cujas ruas caminhavam os dois pintores e outros modernos. Retrato que usa como personagens os dois, além dos franceses Erik Satie, compositor, e Guillaume Apollinaire, poeta. E, em torno deles, a escritora Gertrude Stein e seu irmão, o pintor e marchand Leo, americanos que mantinham o salão do título, que se tornou ponto de encontro para os boêmios e inventivos modernistas. Mas talvez a experiência mais forte de enquadramento promovida pelo quadrinista americano Nick Bertozzi seja a de gênero: a revolução artística de Picasso e Braque se dá em meio a... uma onda de assassinatos. E quem os investiga são justamente os artistas.

A leitura de um artigo sobre o cubismo me fez de repente me dar conta de que eu mesmo nunca havia atentado para como esse movimento mudou a história da arte explica ao Ideias o laureado Bertozzi, já indicado ao Eisner e ganhador do Harvey e do Ignatz, alguns dos prêmios mais importantes do mundo das HQs. Imaginei, então, que aquela história precisava ser recontada.

A conclusão se somou, então, a uma ideia anterior: ele havia imaginado um homem misterioso que, ao tomar uma poção, adquire o poder de entrar em qualquer pintura que ele deseje.

E é o que acontece em seu livro: é por meio do consumo de um absinto azul , uma variedade rara da bebida de todas a mais alcoólica, que os personagens conseguem invadir as pinturas e viver uma experiência quase mística, um transe.

Sim, essa imagem do transe do absinto é uma metáfora para a relação entre a criação artística e o inconsciente admite Bertozzi.

A coisa é séria, então. O que para quem não dá o devido valor à chamada arte sequencial poderia soar como apenas um quadrinho que brinca com as biografias de artistas modernos, surge, na fala do desenhista-escritor, como uma discussão a respeito do próprio estatuto da arte. E o uso da revolução cubista, um projeto extremamente cerebral da parte de seus criadores, apenas amplia os horizontes do olhar de Bertozzi:

Acredito que a arte é alcançada pelo balanço entre o inconsciente intuitivo e edição consciente. Os melhores artistas que conheci são aqueles capazes de andar em cima dessa linha divisória, uma vez com um pé mais de um lado, outra com um pé mais do outro. E não tenho dúvida que foi dessa dicotomia que nasceu o cubismo.

Daí os personagens serem pintados com as cores fortes de oposições, tensões: se Picasso vira um valentão hedonista que mergulha em noitadas etílicas e libertinas e volta e meia quer sair no soco, ele aparece assim para ser o tipo dramatúrgico oposto ao do moralista e intelectualoide Braque, que analisa os trabalhos de ambos até que eles consigam chegar a seu objetivo. Cada um dos dois incorpora um dos lados da díade de Bertozzi.

Pois bem, os dois se juntam a Satie, Apollinaire, Leo e Gertrude Stein, e à amante e assistente desta, a também americana Alice B. Toklas, porque artistas modernistas estão sendo decapitados por um estranho vulto na noite parisiense. A trama os leva ao encontro de um personagem improvável na equação: o mestre pós-impressionista Paul Gauguin, morto em 1903.

Para mim, Gauguin corporificava o artista intuitivo que seguiu um caminho de autossatisfação e hedonismo com a arte, caminho que o destruiu justifica Bertozzi. Era, então, um contraponto fantástico para o intelectualismo de Braque.

Mas havia um motivo a mais para a escolha do vilão :

No fundo, eu queria era uma desculpa para copiar os quadros dele.

Visualmente, então, Salon traz impressa uma outra dicotomia, entre a tendência didática de Bertozzi que insiste em pincelar aqui e ali seu livro com reproduções efetivas dos estilos dos artistas que retrata e sua própria tendência criativa, marcada por um traço realista, mas pessoal. Cada capítulo, marcado por diferente cenário as escadarias de Montmartre, as vielas de Montparnasse, as margens do Sena traz também uma paleta própria, criando diferentes mundos cromáticos a dar alma a sua geografia do espírito de uma época .

O espírito de época fotografado por Bertozzi o coloca em uma espécie de gênero de quadrinhos, o da ficção histórica e/ou literária, centrada na reinvenção de universos apresentados em outras obras, estilo já visitado por nomes como o mestre Alan Moore, que em, por exemplo, Do inferno, narra as peripécias de um legista em busca de ninguém menos do que Jack O Estripador. O próprio Bertozzi já se enveredou por esse caminho, ilustrando o primoroso Houdini: the handcuff king, escrito por Jason Lutes, narrando a biografia do maior mágico de todos os tempos.

Certamente que me incluo nesse gênero diz Bertozzi. E a razão é simples: a história, como apresentada na academia, pode ser muito seca. Aprendemos datas, nomes, às vezes motivações e, no caso de chefes de Estado, por vezes há decisões de momento, mas raramente temos a oportunidade de ver o efeito do cotidiano deles na história. Quis mostrar o lado lascivo de Picasso e como este se tornou uma questão para ele, mas também como ele era preocupado com seus amigos. Era uma pessoa complexa que realmente mudou o mundo e essa história deveria ser narrada seguidas vezes. Só dei uma nova forma a ela.

O que sugere uma postura: o autor quer ser didático.

Sim, eu quero que o leitor entenda algo diz Bertozzi. Que, apesar das hagiografias, os artistas são gente inteligente e que trabalha duro com seus talentos e que, por vezes, dão a sorte de fazer amizade com patronos que os financiam.

Mas isso não acaba por exigir demais do leitor? Como ficará claro na próxima página, Salon não é leitura para qualquer um. Contém uma exigente galeria de referências, nem sempre óbvias à primeira vista.

Não acho que o leitor tenha que ter muito conhecimento sobre pintura ou história para apreciar o livro afirma. Eu propositalmente simplifiquei os passos da criação do cubismo para que o leitor pudesse se ater a minha tese: movimentos artísticos não são criados a um fôlego por artistas semi-deuses. Esses movimentos nascem mais por acidente, por tentativa e erro e com muita galhofa ao redor. O que não significa que um leitor de conhecimentos mais elaborados não vá aproveitar mais ainda por pegar as referências escondidas ao longo da história.

Os artistas, então, são, para ele, gente comum. Mas Balzac, em seu clássico A obra-prima ignorada, proclamava o contrário: eles teriam uma essência de apartamento dos outros homens, comuns. Seriam seres singulares . Tão singulares quanto determinam as idiossincrasias dos personagens de Bertozzi:

É, eu acho que aceito a acusação de ter criado personagens idiossincráticos. Mas eles vieram das histórias dos próprios personagens reais. Daí a viagem etílica [com o absinto azul] ser sem dúvida uma metáfora para a necessidade dos artistas de alcançar o desconhecido, confrontar-se com o que é mistério para ele.

Mas ao mesmo tempo, esses mesmos personagens reais estão a serviço de uma trama fantasiosa.

Contar uma história é estabelecer conflitos que gradualmente caminham para uma resolução e é preciso que os personagens se posicionem dos lados desses conflitos. As próprias ações dos personagens me fizeram colocá-los de um lado ou do outro, como protagonistas ou antagonistas. Ora, Picasso de fato era valentão e usei isso. Não queria inventar as personalidades, apenas dar cores fortes a elas.

Mas ainda assim, choca ver Gauguin como um antagonista.

Ele é o grande exemplo da tensão central do livro, aquela entre consciente e inconsciente, entre intelecto e experiência. Apresentado no livro como uma espécie de dr. Frankenstein, ele se deixa mergulhar fundo demais na esfera da intuição e do experimental. Se é verdade que ele não se transformou de fato num monstro do absinto, ele, por outro lado, é um ótimo símbolo, porque seu corpo foi derrocando, ele perdeu seu vigor intelectual.

Bertozzi dá aulas de cartunismo na NYC's School of Visual Arts e na prestigiosa Rhode Island School of Design. Nos dois casos, ele incentiva os alunos a pensar no que desenham e nas lacunas de sua formação. Eles podem se encontrar:

Se eu tivesse adormecido na aula de dadaísmo e não na de cubismo, talvez Salon fosse sobre Duchamp. E, pensando nisso agora, talvez fosse até um livro melhor.