Juliana Krapp, JB Online
RIO - Com o gravador em punho, o italiano Giovanni Ricciardi registrou Rachel de Queiroz afirmar que não gostava de escrever; achou estranho quando encontrou João Ubaldo Ribeiro de calção de banho, ajeitando a hélice de um ventilador na hora da entrevista, mas gostou da conversa que tiveram debaixo das palmeiras de Itaparica; a Jorge Amado, pediu que explicasse qual a diferença entre o ipsilone simples e o ipsilone duplo, ao que o baiano saiu pela tangente ( Tieta nunca me disse... ); já diante de um tímido Manoel de Barros, teve de capitular: com o gravador ligado, não tinha conversa.
De 1986 a 1992, Ricciardi entrevistou mais de 100 escritores brasileiros, de diferentes origens e gerações, na busca por estabelecer uma relação entre suas histórias de vida e sua produção textual. O resultado só agora vem à tona, e aos poucos: dos sete volumes de Biografia e criação literária, três foram publicados recentemente ( Entrevistas com acadêmicos e Entrevistas com escritores de São Paulo saíram pela editora Nitpress, sendo o primeiro em parceria com a Academia Brasileira de Letras; e Entrevistas com escritores de Minas Gerais , pela Editora da Ufop), outros dois estão no prelo ( Entrevistas com escritores do Sul e Entrevistas com escritores de Goiás , em editoras locais), e dois ainda estão em fase de acabamento ( Entrevistas com escritores do Norte e Nordeste e Entrevistas com escritores do Rio de Janeiro ).
Sociologia do autor
Aluno de Murilo Mendes quando cursou letras clássicas na Universidade de Roma, na década de 1960, Ricciardi escolheu observar a literatura brasileira com instrumentos tomados da sociologia: questionários pré-estabelecidos (embora passíveis de inclusões e mudanças, claro), com cerca de 40 perguntas, que vão desde detalhes da infância até as dificuldades financeiras da profissão. Travou assim o que ele chama de sociologia do autor , baseada na ideia de escritor corporal : uma aproximação entre materialidade e palavra .
Como eu tinha uma formação do tipo sociológica, decidi analisar o escritor não apenas como autor de textos, mas também enquanto homem histórico, de onde a minha convicção de que a escrita não pode se separar da biografia diz ele.
Assim, o italiano lançou a todos os entrevistados perguntas como: Qual é a sua origem? , Por que escreve? e Quem foi seu mestre de vida? , entre outras, além do pedido por um autorretrato. Acabou apegando-se especialmente a uma questão, que se mostrou a mais decisiva para revelar a simbiose inevitável entre experiência e obra: Houve em sua vida uma encruzilhada que o tenha marcado de forma definitiva? .
Eu, que tenho formação gramsciana, pensava que, diante dessa pergunta, todos fossem responder 'o golpe de 64!' conta. Mas, longe disso, para a maioria dos escritores o acontecimento era algo relativo à família, ao casamento, às vezes a um fato que eles nem se lembravam de ter vivido. A questão é que esse acontecimento tem consequências diretas na escrita. Ou seja: às vezes, só mesmo lançando um SOS à biografia podemos explicar uma mudança no texto e na ideologia do autor.
Foi após as entrevistas que Ricciardi pôde então compreender o período de escrita hermética de Gilberto Mendonça Teles ( Aquele foi um tempo em que eu precisava falar escuro , justificou o entrevistado) ou o enigma que representa o segundo livro de poemas de Manoel de Barros, Face imóvel, de estilo diferente de toda a sua obra. Por carta (já que acabou não completando a entrevista presencial), o poeta explicou: Me empolguei pelo comunismo e entrei na fila dos jovens que precisavam salvar o mundo. Acabei esquecendo que a poesia não se faz com ideias, e sim com palavras .
Pois o melhor desse inventário de bate-papos nada ingênuos são os próprios detalhes biográficos, anedotas e memórias corriqueiras dos autores que fizeram a literatura brasileira na segunda metade do século passado.
Assim, Augusto de Campos conta como ele o irmão, Haroldo, fizeram para rachar, por sorteio, a sua biblioteca da infância e juventude, quando se casaram, ambos no mesmo ano. Ignácio de Loyola Brandão explica como, na infância, trocava com os colegas definições do dicionário (era o único a ter um em casa) por tampinhas e balas. E, poucas semanas depois do começo do Plano Cruzado, Marcos Rey lamenta não ter podido dedicar-se exclusivamente à literatura; mas não parece dar muita bola ao fato de ser considerado menor por seus amigos escritores, depois dos 33 enredos pornográficos que escreveu para o cinema, e em vez disso elege como um de seus maiores desgostos o fato de não morar numa casa onde pudesse ter cachorros.
Apesar da diversidade de respostas para seu questionário, ainda assim Ricciardi arrisca um esboço de classificação para os escritores brasileiros. Seriam eles autores éticos (aqueles que vêem a escrita como dever moral, como Ignácio de Loyola Brandão e Josué Montello), egoístas (os que se põe em primeiro plano, o que, segundo o italiano, acontece com quase todos) e possuídos (aqueles que não sabem por que escrevem, mas não conseguem deixar de fazê-lo, como seria o caso de Fernando Sabino, Caio Fernando Abreu e João Ubaldo Ribeiro).
Ao hercúleo trabalho de Ricciardi (muito prejudicado pela ausência de uma editora que assumisse a publicação de todos os volumes), faltaram é claro algumas peças fundamentais no panorama de autores brasileiros atuantes nos anos 80. O que, sem sombra de dúvida, diz muito sobre suas biografias:
O Dalton Trevisan me dispensou, justificando que o que ele é está nos livros. O Rubem Fonseca eu até consegui convencer, mas nos desencontramos três vezes. E o Raduan Nassar me recebeu em casa, ofereceu café e bate-papo. Mas, na hora agá, não quis falar de literatura. Agora, só conversa sobre galinhas.