José Mario Pereira, jornalista e editor, JB Online
RIO - Autor de uma das obras mais originais da literatura alemã do século 20 reunida em 22 volumes e que inclui relatos de guerra, romances, contos, aforismos, ensaios filosóficos e literários, Ernst Jünger (1895-1998) é apreciado por leitores das mais variadas tonalidades ideológicas. Se Walter Benjamin, Georg Lukács e Norbert Elias tiveram reticências em relação a sua obra, Carlos Drummond, Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido se mostraram simpáticos a ela. Jorge Luis Borges fez questão de visitá-lo em Wilflingen, quando esteve na Alemanha em 1982, e na conversa, em francês, confessou ter ficado impressionado com a leitura juvenil de Tempestades de aço (1920), relato sobre a luta no front da Primeira Guerra traduzido pelos militares argentinos logo após a edição original e que a editora CosacNaify publicará em breve.
Escrito em seis semanas a partir do sonho (Jünger os anotava), Nos penhascos de mármore (CosacNaify. 200 páginas. R$ 49) é um romance alegórico, cuja ação se desenrola em 30 pequenos capítulos de parágrafos curtos, ambientada numa estranha e fascinante geografia, descrita de forma minuciosa, com detalhes microscópicos da flora e fauna. Apresentando um narrador culto, admirador do naturalista Carl von Lineu, a história, que se desenvolve numa topografia única na ficção contemporânea, acabou por se mostrar premonitória, antevisão não só do horror nazista como também dos crimes de Stalin, embora Jünger sempre tenha afirmado que não foi sua intenção fazer um romance político.
Cápsulas de veneno
Publicado em 1940, de imediato provocou nos leitores o desafio de identificar os personagens com figuras de proa da política alemã da época. Cenários e atitudes típicas do nazismo, como os campos de concentração, as tropas SS, e até o costume da elite do partido nacional-socialista de portar cápsulas de veneno para a eventual necessidade de um suicídio, aparecem em Nos penhascos de mármore. Em entrevista a Julien Hervier, o autor contou que, só nas duas primeiras semanas depois do lançamento, o livro vendeu 14 mil exemplares. Jünger, então no Exército e ausente da Alemanha, chegou a temer pela segurança do editor. Foi aí que, numa reunião do Partido Nazista em Berlim, o Reichsleiter de Hannover, Philipp Bouhler, censor das obras recém-editadas, aproximou-se de Hitler para afirmar que Auf den Marmorklippen incitava ao complô: Meu Führer, as coisas não podem continuar assim com esse Jünger. Ele foi longe demais, e isso tem de acabar! . Hitler, que admirava o escritor, mandou que o deixassem em paz.
Entre a liberdade e a tirania
A admiração de Hitler criou a suspeita de que Ernest Jünger fosse nazista. Mas Hannah Arendt, num informe encomendado pela Commission on European Jewish Cultural Reconstruction, logo após a Segunda Guerra, escreveu: Os diários de guerra de Ernst Jünger oferecem talvez o melhor exemplo, e o mais transparente, das imensas dificuldades a que se expõe um indivíduo quando quer conservar intactos seus valores e seu conceito de verdade num mundo onde verdade e moral perderam toda expressão reconhecível. Apesar da inegável influência que os primeiros trabalhos de Jünger exerceram sobre certos membros da intelectualidade nazi, ele foi desde o primeiro até o último dia do regime um ativo opositor ao nazismo, demonstrando com isso que o conceito de honra, algo antiquado mas difundido então entre o corpo de oficiais prussianos, era completamente suficiente para motivar uma resistência individual .
Em Nos penhascos de mármore os modelos do narrador anônimo e de seu irmão Otho são naturalmente Ernst e Friedrich Georg Jünger. Depois de participarem de uma guerra, eles decidem se isolar num antigo monastério para se dedicar ao estudo das plantas, fósseis e insetos raros e à leitura de obras eruditas na imensa biblioteca. Do seu posto de observação, o narrador passa a atentar para o que ocorre no território dominado pelo monteiro-mor, antigo senhor da Mauritânia, misterioso e demoníaco personagem que muitos associam a Hitler. O clima um tanto bucólico dos primeiros capítulos logo será perturbado por acontecimentos insólitos, levando o protagonista a empreender uma expedição ao interior da densa floresta, em companhia do fiel amigo Belovar, seus homens e cães; lá se deparam não só com armadilhas mortais como também com um esfoladouro cheio de corpos esquartejados ou em estado de putrefação. Os críticos associam este cenário aos campos de extermínio, sem deixar de acentuar que até a publicação do romance Jünger jamais se referira à existência dessas fábricas da morte , de que certamente tinha conhecimento.
Logo após entrar na floresta, vê-se o narrador envolvido num violento combate corpo a corpo, e também presencia a luta mortal entre os galgos de Belovar e os mastins dos mauritanos. Apesar de sua bravura no campo de batalha, Belovar é morto, e a matilha sanguinária, tendo à frente o feroz Chiffon Rouge, cão de caça do monteiro-mor, persegue o narrador até o interior de sua morada, quando é atacada pelas muitas cobras que atendem ao comando mágico de Erio, fruto de uma aventura do narrador com a filha de Lampusa. A cena, carregada de simbolismo, torna necessária a informação de que Jünger conhecia profundamente o pensamento mágico e esotérico, a alquimia, o ocultismo e a astrologia, e que em 1959 fundou com Mircea Eliade, de cujas perspectivas metafísicas se sentia próximo, a revista Antaios, que dirigiu até 1971. Importante ainda recordar que Eliade anotou, no diário de sua temporada na Índia, ter visto com frequência cobras enormes passeando tranquilamente entre os monges adormecidos no ashram em que ficara hospedado.
São muitos os tipos curiosos em Nos penhascos de mármore, entre eles o grande e destemido Belovar; o padre Lampros, habitante do mosteiro da Falcífera, cujo conhecimento da flora e da fauna é admirado pelo narrador; a velha Lampusa, sempre envolvida no preparo de poções que lhe dão ar de feiticeira; o pequeno Erio, espécie de elfo cercado por serpentes e cascavéis que lhe obedecem, como Grifa, a maior e mais bela de todas. Há também Braquemart, o absoluto técnico do poder, que sempre via os fragmentos e jamais as raízes das coisas , por muitos identificado com Goering; o príncipe Sunmyra, que visita o narrador de automóvel, a única máquina moderna citada no romance; e Ansgar, que leva os dois irmãos, mas não Lampusa e Erio, para o porto seguro de Alta-Plana, depois de o narrador presenciar o desaparecimento do reino de Marina em meio ao fogo, e desconfiar que, em breve, o monteiro-mor fará uma investida ainda mais violenta.
Embora tenha conhecido vários membros importantes do regime nazista, Jünger nunca se entrevistou com Hitler. Segundo o escritor, em mais de uma ocasião ele havia emitido sinais de amizade e manifestou interesse por minha pessoa. Mas não me deixei seduzir por aqueles oferecimentos. Teria sido até muito fácil instrumentalizá-los para obter alguma vantagem pessoal. Não seria necessário um grande esforço para agir como Goering. (...) Naquela ocasião me coloquei num outro plano. (...) Fui um opositor de Hitler, mas não um opositor político. Simplesmente, estava em outra dimensão .
Em 1995, o autor de O trabalhador referiu-se a Hitler numa entrevista ao jornal italiano La Repubblica: Quando ainda era o anônimo chefe de um grupelho como o dos nacional-bolcheviques de Ernst Niekisch e naquele momento eu vivia em Leipzig certo dia, devia ser em 1926, Hitler se fez anunciar por Hess, mas não tive tempo para recebê-lo. Por outro lado, estava convencido de que se tratava de um dos muitos e insignificantes sectários que circulavam naquele momento. Graças a Deus, aquele encontro não aconteceu. Se, por casualidade, se houvesse produzido, e por acaso ele tivesse apoiado uma mão sobre o meu ombro enquanto alguém nos imortalizava, imagino que a foto haveria dado a volta ao mundo. Afortunadamente as coisas aconteceram de outra maneira .
De temperamento aristocrata, na década de 1920 Jünger se posicionava ao lado dos antidemocratas, e assim não se abalou com o fim da República de Weimar. No nazismo, parece ter repudiado seu apelo aos instintos elementares da raça e seu aceno às massas. Goebbels chegou a lhe oferecer uma vaga como candidato a deputado nas eleições imediatamente anteriores à instalação do nazismo, mas ele recusou: Um bom verso vale mais que os votos de 80 mil idiotas . Sempre se opôs ao antissemitismo, fosse ele o dos nazistas ou o de filósofos que apreciava. Chegou a dizer: Um pensador que considero muito importante para a análise do individualismo moderno é Tocqueville. Teve uma visão clarividente daquilo em que se converteria a América e previu sua oposição à outra grande potência do século 20, a Rússia. (...) Se ele não fosse antissemita, talvez sua fortuna tivesse sido muito mais ampla. Eu o estudei a fundo e nos meus ensaios há numerosos rastros dele .
Condecorado na Primeira Guerra, Jünger participou também da Segunda, sobreviveu à morte dos dois filhos (o primeiro lutando na Itália e o outro por suicídio); foi íntimo de Carl Schmitt e Albert Hofmann, o descobridor do LSD, com quem experimentou os efeitos do alucinógeno; frequentou Picasso e Braque durante a ocupação de Paris pelas tropas alemãs; evitou a prisão de muitas pessoas, entre elas um protegido de Colette; impediu a demolição de igrejas e monumentos pelas tropas do Reich, e se tornou conhecido como estudioso de flores e insetos, chegando a descobrir uma espécie rara de borboleta que ganhou seu nome, a Trachydora juengueri.
Próximo a alguns dos oficiais que atentaram contra Hitler em 20 de julho de 1944 um deles o conde Von Stauffenberg, que em fevereiro estará nos cinemas brasileiros na pele de Tom Cruise Jünger passou quase todo o período da Segunda Guerra em Paris, sob as ordens e a proteção do general Speidel; este tinha informações de que o general Von Keitel e outros viam o escritor com desconfiança devido a sua amizade com Niekisch, representante destacado do nacional-bolchevismo, e pretendiam se livrar dele na primeira oportunidade.
Jünger esteve no Brasil entre outubro e dezembro de 1936, visitando Belém do Pará, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, onde lhe chamou a atenção a forma como as escarpas se projetam do solo, de um modo que faz pensar em orquídeas e serpentes . Essa experiência ele narrou em Viagem atlântica, livro que está a exigir publicação em português. O crítico Antonio Candido, no agudo ensaio que antecede a presente edição de Nos penhascos de mármore, sugere que as andanças de Jünger pelo país, especialmente seu contato com a selva amazônica e as cobras que viu no Butantã, o influenciaram na feitura desta sua ficção.
Apaixonado pelas viagens, ele esteve nos mais exóticos lugares, da Ilha de Sumatra à Sicília, da Indonésia à Grécia. De 1969 a 1977, visitou com regularidade o Marrocos, especialmente Agadir, que lhe inspirou o cenário de Eumeswil, romance publicado quando completou 80 anos. Descobriu o Magreb em 1913, aos 17 anos, ao fugir dos bancos escolares para se engajar na Legião Estrangeira até ser recuperado pelo pai. Essa experiência está relatada em Jogos africanos (1936). Após ter se instalado em 1950 em Wilflingen, na Suábia, visitou também a Turquia, o Japão, o México, onde conheceu os fungos alucinógenos do país, e, em 1986, para ver pela segunda vez o cometa de Halley, a Malásia.
Atento leitor da Bíblia, de Ariosto, Nietzsche, Léon Bloy (um de seus autores prediletos), Dostoievski e Cioran, foi também próximo de Heidegger, que dedicou todo um curso a O trabalhador, o ensaio de 1932 em que Jünger analisou a questão da técnica e a massificação da vida moderna. Sua notoriedade como escritor teve início com as traduções de seus livros na França, país cuja literatura conhecia em profundidade. Publicado em 1942 em Paris, Nos penhascos de mármore foi saudado como um acontecimento por Julien Gracq. Quando serviu nessa cidade, Jünger costumava visitar Gide (que o cita no seu Diário), Montherland, Pierre Drieu La Rochelle e Jean Cocteau, que o presenteou com os originais de La machine infernale em homenagem ao impacto que lhe causara a leitura de Nos penhascos de mármore.
Este é o terceiro romance de Jünger que se publica no Brasil; com o título de Sobre as falésias de mármore, já teve duas edições em Portugal, a última pela Vega, com tradução, prefácio e notas de Rafael Gomes Filipe. Em março de 1981, o então diretor editorial da Nova Fronteira, Pedro Paulo de Senna Madureira, lançou Heliópolis, informação que não consta das Sugestões de leitura , ao final desta edição da CosacNaify. Ali aparece consignada como a primeira mas na verdade é a segunda obra do autor alemão entre nós o excelente Eumeswil, lançado em 1987 pela Guanabara, dirigida à época pelo mesmo Pedro Paulo.
Se para Ernst Jünger Nos penhascos de mármore denuncia a violência brutal de certas formas de tirania , para Heidegger a problemática nietzschiana do niilismo que domina os ensaios de Jünger marca também este romance. Segundo alguns críticos, trata-se de uma fábula que glorifica a evasão, a fuga para um lugar seguro, uma autodefesa do autor por não ter denunciado o nazismo desde o início. Mas o mais justo é acentuar que a luta entre liberdade e tirania e a oposição entre a dignidade do homem e as forças do mal são a tônica deste livro visionário, um dos clássicos do século que Jünger atravessou quase inteiro, agora em excelente tradução de Tercio Redondo.