Alvaro Costa e Silva, JB Online
RIO - Nas pouco mais de 100 páginas de Amuleto a novela-canção do chileno Roberto Bolaño sopra um zéfiro da porra , como diz a narradora, Auxilio Lacouture, uruguaia de Montevidéu, olhos azuis, cabelos louros branqueando cortados à Príncipe Danilo, cara comprida e magra como a do Quixote, rugas na testa, sem dentes da frente, o que lhe fazia falar com a mão em concha tapando a boca, aquela que ficava uma semana sem ter um peso para gastar e era feliz, pois era a mãe da poesia mexicana , como se autointitulava. Se não bastasse, tinha um anjo da guarda argentino (na verdade, argentina) que lhe falava ao ouvido em jargão psicanalítico.
Lenda da Cidade do México nos anos 1960 e 1970, Auxilio conheceu os poetas espanhóis León Felipe e Pedro Garfias ambos da chamada Generación de 27 a artista plástica catalã Remedios Varo, a poeta e jornalista salvadorenha Lilian Serpas, que foi amante de Che Guevara (Auxilio perguntou como ele era na cama. Normal , foi a resposta). Conheceu também Arturo Belano, o alter ego de Roberto Bolaño, personagem que aparece em muitos dos contos do autor e é um dos detetives selvagens de seu romance mais famoso. Auxilio fez questão de dizer para a mãe de Belano, quando o levou para casa bêbado no primeiro dia em que se viram, que não tinha ido para cama com o filho dela.
Publicada em 1999, Amuleto veio em seguida a Detetives selvagens, e a presença da mesma Auxilio Lacouture, como um dos depoentes da segunda parte do longo romance épico, levou muita gente a fazer comparações entre os dois livros. Ambos no entanto têm quase nada em comum, exceto mostrar que o autor tinha um projeto de obra em progresso, interrompido com sua morte prematura, aos 50 anos, em 2003. Como explicou o próprio Bolaño numa entrevista, Amuleto está mais próxima estruturalmente de Noturno do Chile (2000). São novelas musicais, de câmara, em diálogo com o destino de quem as narra.
O episódio da invasão da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) por tropas militares, durante os dias de repressão ao movimento estudantil, em setembro de 1968, é o eixo em torno do qual se desenvolve o relato. Auxilio estava lá, antes de 68 se transformar realmente em 68 , e foi a única que não deixou a Faculdade de Filosofia e Letras, trancada dentro do banheiro. Quanto tempo ficou lá, comendo papel higiênico, um dia ou 15? O leitor não sabe porque nem ela sabe direito. Mas foi tempo suficiente para que nos contasse suas memórias, que tanto podem retroceder como avançar no tempo.
O monólogo poético e delirante de Auxilio que formalmente representa um avanço em relação aos escritores do boom é a maneira que Bolaño utiliza para pintar a tragédia política da América Latina. O parágrafo de abertura funciona como chave: Está será uma história de terror. Será uma história policial, uma narrativa de série negra e de terror. Mas não parecerá. Não parecerá porque sou eu que conto. Sou eu que falo e por isso não parecerá. Mas no fundo é uma história de um crime atroz .
Será e não parecerá uma história de terror porque os acontecimentos são narrados de maneira indireta e elíptica. O esconderijo de Auxilio fica distante de Tlatelolco, praça cercada por muralhas de pedras astecas, onde houve La Matanza mais de 300. E a prisão de Arturo Belano no Chile, depois do golpe de Pinochet e do assassinato de Allende, é contada em pouco mais de uma linha.
Menos pesadelo, e mais arte, mesmo que na visão enlouquecida da narradora, que, incansável em sua missão, vai-se envolvendo com pessoas cada vez mais doidas: o cafetão Guerrero, Rei dos Homossexuais, na tentativa de livrar o poeta Ernesto San Epifanio da escravidão; o pintor Carlos, filho de Lilian Serpas, que vive em pânico com a história de Erígone, da mitologia grega; e sobretudo com jovens que se embriagam e discutem literatura a altos brados Se Huidobro tivesse conhecido Rubén Darío da mesma maneira que Erza Pound conheceu W. B. Yeats? no mítico botequim Encrucijada Veracruzana. No fim, ela ouve a canção: E embora o canto que escutei falasse da guerra, das façanhas heroicas de uma geração inteira de jovens latino-americanos sacrificados, eu soube que acima de tudo falava do destemor e dos espelhos, do desejo e do prazer .
Ao longo do texto, pela boca desdentada de Auxilio Lacoutur, Bolaño aproveita para cunhar frases de efeito A verdade é que os jovens poetas geralmente acabam sendo velhos jornalistas fracassados ensinar gírias exclusivas do DF chido, que quer dizer um simples tudo bem . E fazer profecias, algumas maldosas, mas irresistíveis por isso mesmo:
Vladimir Maiakovski voltará a ficar na moda lá pelo ano de 2150. James Joyce reencarnará num menino chinês em 2124. Thomas Mann se converterá num farmacêutico equatoriano em 2101. Marcel Proust entrará num desesperado e prolongado esquecimento a partir do ano de 2033. Jorge Luis Borges será lido nos túneis em 2045. Louis-Ferdinand Céline entrará no Purgatório no ano de 2094. Adolfo Bioy Casares verá toda a sua obra levada ao cinema exatamente em 2015. Witold Gombrowicz gozará de grande apreço nos extremos do Rio da Prata lá pelo ano de 2098. Quem lerá Gary Snyder? Nicanor Parra, no entanto, terá uma estátua numa praça do Chile em 2059. Já Octavio Paz terá a sua no México, em 2020. Ernesto Cardenal terá também uma estátua, a dele não muito grande, na Nicarágua no ano de 2018. Mas todas as estátuas voam, por intervenção divina ou mais usualmente por dinamite, como voou a estátua de Heine. E Marguerite Duras viverá no sistema nervoso de milhares de mulheres em 2035.
Só faltou adivinhar que, neste início de 2009, 2666 seu romance derradeiro e inacabado, com tradução prometida pela Companhia das Letras para 2010 seria um dos livros mais vendidos na lista do New York Times e faria parte do Top 10 dos críticos do jornal.