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Em 'Uma nova história da arte', Julian Bell foge do eurocentrismo

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Mauro Trindade*, JB Online

RIO - Desde a publicação do grande A história da arte, de Ernst Gombrich, em 1950, as tentativas de publicação de novos livros do gênero esbarram em questões conceituais e metodológicas que vão desde a própria conceituação do que é arte até seus limites cronológicos e geográficos. O pintor e historiador Julian Bell enfrenta essas questões em Uma nova história da arte, que a Martins Fontes edita com tradução de Roger Maioli que preserva uma desejável coloquialidade desse professor da City & Guilds of London Art School.

Ante a profusão de imagens e de informações hoje disponíveis sobre a arte pré-colombiana, asiática e africana, é inevitável notar o quanto o mundo cresceu e que a história da arte européia e, mais tarde, americana já não é capaz de dar conta da multiplicidade de criações feitas em locais tão diferentes quanto a Mesoamérica dos olmecas, o reino de Daomé e a China do período Song. Fustigada pela emergência de novas populações, com a descoberta de culturas distantes do eixo ocidental, a história da arte, tal como se conhecia, parece acanhada frente a soluções engendradas em outras sociedades.

Outros lançamentos recentes também não se mantêm teimosamente eurocêntricos e buscam dar conta dessa ampliação do mundo da arte. Entre eles, os breves Beauty and art, de Elizabeth Prettejohn (2005), The atlas of world art, organizado por John Onions (2004), e o catedralesco The grove dictionary of art (2003), com suas mais de 32 mil páginas. Essas tentativas de trazer à luz a arte de terras mais distantes do continente europeu, porém, terminam quase sempre reiterando um certo caráter taxonômico advindo da botânica e da biologia, que classifica artistas e objetos em classes, ordens e gêneros.

Bell busca fugir do inventário por meio de um constante exercício de comparação do que acontecia em determinados períodos históricos em diferentes locais do planeta. É uma tentativa de entender como esses objetos surgiram e de como eles se relacionam uns com os outros. Um esforço louvável, que acrescenta dezenas de passagens e 372 ilustrações, no total a respeito do que ironicamente chama de um grande saco que contém todos esses fascinantes objetos que as pessoas fizeram em outros tempos . Mas ele próprio sabe o quanto sua história e a História tem de teleológico, numa tentativa de criar um desfecho coerente com o que queremos contar. E avisa: Se algum de meus truques de apresentação fizer com que (os objetos de arte) pareçam aparentados, amigos e amigas, cuidado: as coisas podem ser mais estranhas do que parecem .

Bem que este professor do noroeste da Europa , como se apresenta, tenta fugir da apresentação do exótico e naturalizar a arte de civilizações que cresceram e sumiram sem contato umas com as outras: Enquanto isso é o limite absoluto do historiador. Indica claramente que ele só sabe que determinada coisa vinha ocorrendo ao mesmo tempo em que outra, não por quê . Bell se esforça em aproximações, como ao citar na mesma passagem a catedral gótica, como síntese cultural de tradições diversas, e as mandalas, como intrincados diagramas de toda a Criação. Transcendência e religiosidade poderiam avizinhar realidades tão diferentes quanto o reino indiano de Chola e a Borgonha medieval, por volta do ano 1000.

Mas há problemas de ajuste. O escritor reverencia em especial a arte chinesa, que reputa como a maior e mais importante de todo o mundo, sem, entretanto, dar o espaço devido a uma produção tão significativa. Ele ainda esbarra em claras limitações historiográficas, como manter o Egito dentro de uma tradição clássica desatrelada do continente africano. Uma construção que intelectuais como Cheik Anta Djobi, Joseph Ki-Zerbo e Amadou Hampaté desmontaram há décadas. Estamos praticamente perdidos no que se refere à antiga história africana , admite Bell.

A arte do Terceiro Mundo, por assim dizer, não está, no final das contas, realmente inserida em um encadeamento histórico mundial, mas figura numa tentativa de representação nacional, como acontece em certas feiras e bienais. Essas sociedades continuam periféricas no livro, cujo enquadramento permanece balizado por Praxíteles e Manet.

Mesmo a tentativa de refletir sobre a relação entre os grandes centros culturais Roma, Londres e Paris e a periferia européia é apenas ensaiada. A produção portuguesa, em especial, é subestimada exatamente no momento em que tem recebido importantes contribuições historiográficas de um Vitor Serrão ou de um Joaquim Inácio Caetano. Isso sem falar nas soluções e características particulares das colônias ultramarinas praticamente esquecidas pelo livro, com exceção de honrosas lembranças à pintura cusquenha e a Aleijadinho.

A Nova história... de Julian Bell, então, é menos um relato acadêmico e mais uma crônica, sem certezas científicas e sem prender artistas a estilos de época. Seu texto é maleável e permite enxergar nuanças sutis sob a distopia classificatória que acomete, por exemplo, algo tão vasto e variado quanto o barroco. Ainda aponta datações incômodas, como da obra de Ruisdael, precursor do romantismo, em meados do século 17, ou do abstracionismo nos desenhos espirituais de Georgina Houghton, na Londres de 1864.

A obra fica restrita à história das pinturas, gravuras e esculturas, e deixa de lado a arquitetura, a performance, as intervenções urbanas e toda a arte cinética, do cinema ao vídeo. É o livro de um pintor. E como pintor ele observa com fineza a subjetividade do figurativo, o acabamento das telas e dos retábulos renascentistas, os efeitos de modelagem do chiaroscuro e a arte de Francis Bacon. E também revela suas idiossincrasias, ao tratar Klimt como um toucador cheio de andrajos , Joseph Beuys como o mestre do feltro , e arte digital com antipatia. Tem igualmente um franco desinteresse pela art nouveau e pela crítica conceitualista a partir dos anos 70.

O que está perto demais embaça a visão , escreve, transido pelas morfologias do contemporâneo: graceja sobre o Caminhão de cimento, de Wim Delvoye, e se irrita com a arte de Jeff Koons, que consistia em seu próprio carreirismo e em sua disposição de cooptar os esforços alheios . Talvez tenham ficado de fora outros artistas sem tanta leviandade jovial , como escreve a respeito da década de 90.

Mesmo sem exibir a cultura enciclopédica de historiadores do porte de um Leonardo Benevolo ou a profunda erudição de um Arnold Hauser ou de um Erwin Panofsky, Julian Bell faz um grande esforço ao trazer o leitor para mais perto das obras, a despeito de vivermos um tempo no qual o próprio entendimento do que é ou quando é arte pareça incerto até mesmo para os especialistas. Uma nova história da arte esforça-se em ampliar horizontes e revela o caráter transitivo de nosso tempo.

Resta a crença no poder operativo do artista. Que isto se torne naquilo , escreve Bell a respeito da arte rupestre, quando se aproxima do que Gombrich escreveu nas primeiras linhas de sua História da arte: Nada existe realmente a que se possa dar o nome arte. Existem somente artistas .

*Jornalista e professor. Mestre em história crítica da arte