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Mulher de Saramago: 'Temos uma parceria para a vida'

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Juliana Krapp, JB Online

RIO - Ela usa armações de óculos lilás, grife Cavalli um toque sofisticado no modelito sóbrio, próprio de quem anda de braços dados com o único Prêmio Nobel da língua portuguesa. No chá com os imortais (semana passada), na Academia Brasileira de Letras (ABL), enquanto ele lê em voz alta o trecho de um romance, ela faz dançar o dedo indicador, acompanhando o ritmo da leitura. Sorri, muito. Mas fica bastante séria quando, após vê-lo assinar mais de 200 livros (ele não costuma escrever dedicatórias), repara em seu semblante cansado: Agora já chega .

Temos uma parceria para a vida define ao Idéias a jornalista espanhola Pilar del Rio, mulher do escritor português José Saramago, na homenagem que o autor recebeu na ABL, no último dia 26.

Além de esposa de Saramago, Pilar é também sua secretária, conselheira, tradutora para o espanhol e companheira de convicções políticas: comunista como ele, mantém-se engajada em inúmeras causas humanitárias. É presidenta e faz questão de ressaltar o a no fim da palavra da Fundação Saramago, que se ocupa da preservação da obra do autor e da defesa pelos direitos humanos.

Nasceu em Castril, na Andaluzia, em uma família de muitos irmãos. Tem 58 anos; Saramago, 86. Estão juntos há 22, protagonizando um dos casamentos mais notórios do universo literário que fica ainda mais evidente quando, após meses internado, entre a vida e a morte, o autor publica um livro, A viagem do elefante, que dedica a Pilar, que não me deixou morrer e que, pelo visto, não deixou também que a tormenta abalasse sua cútis:

Foi terrível. Mas em momento algum eu perdi a compostura ou a esperança conta ela, sobre o período em que Saramago permaneceu internado, com pneumonia.

Não foi, também, a primeira vez que uma declaração de amor do casal extrapolou os limites do cotidiano e invadiu a literatura. Nos Cadernos de Lanzarote, os diários do autor, algumas páginas são ocupadas pelas anotações de viagem de Pilar. E na edição especial de Levantado do chão, que acaba de sair em Portugal, há a reprodução de uma carta da periodista, endereçada ao marido.

Ilhados em Lanzarote

A história de Pilar e Saramago é cheia de detalhes que a aproximam dos contos de fadas. Há alguns anos, o vilarejo em que o escritor nasceu, Azinhaga do Ribatejo, deu o nome de Pilar a uma de suas ruas, para homenageá-la: exatamente aquela que se cruza com a que já se chamava José Saramago . Agora, os dois fazem esquina.

Além disso, há a mítica casa em Lanzarote, nas ilhas Canárias, onde vivem: uma edificação branca, isolada da badalação dos grandes centros, com vista para o mar. Lá, uma escada caracol une o escritório de Pilar, no térreo, ao de Saramago, no segundo andar.

Enquanto ele escreve seus romances, no andar de cima, ela os traduz para o espanhol, no de baixo. Concomitantemente: lançando mão de um método nada usual, Pilar não espera o término dos livros para que comece a tradução. Assim que o marido põe o ponto final (nunca definitivo) em um capítulo, o despacha para o escritório abaixo.

O escritor mexicano Carlos Fuentes até costuma brincar com o colega português, dizendo que é um privilégio ter uma tradutora de plantão em casa. Mas Pilar esclarece que, pelo menos para ela, não é uma tarefa tão simples:

A intimidade, nesse caso, atrapalha. Saramago responde às minhas dúvidas com informalidade demais, como se fossem um problema doméstico reclama. E eu evito que isso vire uma discussão.

Pilar é, afinal, uma mulher devotada. Na cerimônia que deu o Nobel de literatura ao autor, há 10 anos, ela apareceu usando um vestido branco, que trazia bordado na barra um mimo especial ao marido: uma frase de O evangelho segundo Jesus Cristo.

Mas, apesar de tão dedicada, é também uma feminista convicta. Contraditório? Nem tanto:

Pilar é uma ativista das causas das mulheres, sem aderir à versão boba do feminismo. É feminista, mas não abre mão de ser extremamente feminina explica a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, mulher de Luís Schwarcz, que edita os livros de Saramago pela Companhia das Letras. É na casa deles, em São Paulo, que o escritor português e Pilar se hospedam, quando vêm ao Brasil.

Logo após retocar o batom (ela não queria tirar fotos para a matéria, mas insinuou que o fotógrafo poderia roubá-las ), a jornalista dá pinta desse feminismo nada bobo, ao responder como é ser mulher de um Nobel:

A única diferença entre mim e a mulher de um operário é a visibilidade. Sou como qualquer outra: que trabalha, cuida dos filhos [Pilar tem um, do primeiro casamento], tem vida própria afirma. Ser mulher é muito difícil, complicado. Mas o mundo se mantém na órbita graças a elas.

Fisgada pela literatura

Pilar conheceu Saramago em uma capa de livro. Estava em uma livraria, em Sevilha, meados dos anos 80, quando seu olhar esbarrou no Memorial do convento. Nunca tinha ouvido falar em seu autor. Começou a ler uma página, comprou o romance, passou a noite a devorá-lo. Voltou então à livraria e levou para casa todos os Saramagos que viu pela frente.

Pouco depois, viajou para Lisboa com alguns amigos. Aproveitou para procurar o seu novo ídolo:

Eu me senti na obrigação de agradecê-lo por ter escrito aqueles livros justifica.

Encontraram-se, e passearam juntos pelos cenários que aparecem em seus romances. Trocaram cartas e telefonemas. Um ano depois, estavam morando juntos, em Lisboa.

Em todo esse tempo, Pilar nunca abandonou completamente suas atividades como jornalista. Colabora para canais de TV e de rádio. Mas a principal parcela de seu tempo é dedicada, ainda, a Saramago: além da tradução dos livros, organiza sua agenda, o ajuda a tomar decisões, é uma espécie de agente. Agora, acaba de ganhar uma nova tarefa: traduz para o espanhol, diariamente, os textos que o escritor posta em seu blog (www.caderno.josesaramago.org).

Todos os dias, por volta da meia-noite, ele senta-se para escrever no blog, e eu traduzo. É muito bom ver um homem de 86 anos empolgado com uma novidade, como um menino de 18 derrete-se a jornalista, que só tem uma reclamação: Sobra pouco tempo para dormir.

E hoje, mais do que nunca, Saramago depende de Pilar. Ainda frágil pela doença ele chegou a pesar apenas pouco mais de 50 quilos é na companheira que se apóia.

Ela o impulsiona, é como uma mola. É, também, muito objetiva, sabe levar os projetos adiante. Foi ela quem conseguiu organizar seus papéis e documentos antigos para formar o acervo da Fundação Saramago conta Teresa Cerdeira, amiga do casal e pesquisadora brasileira que foi a primeira a escrever uma tese sobre a obra do escritor. Eles dividem a glória, é claro. Mas também o sofrimento, a doença.

Teresa aponta ainda para a coincidência entre vida e obra:

Pilar certamente ajuda a compor algumas personagens de Saramago, mas não é nenhuma delas. Curiosamente, as mulheres de suas histórias já eram fortes e decididas antes de eles se conhecerem.

A escritora e acadêmica Nelida Piñon, amiga íntima da Senhora Saramago, lembra que a conheceu em um evento de celebração política: quando, em 1986, um congresso em Valência, presidido por Octavio Paz, relembrava um outro encontro ocorrido em 1936, quando escritores do mundo se insurgiram contra a ascensão das ditaduras européias.

Pilar é múltipla. Ostenta, onde esteja, a mesma elegância moral, a mesma serenidade, o mesmo bom humor, como se suas tarefas não lhe pesassem. Ela é uma mulher da Bíblia, como se diz das criaturas de têmpera forte, e sempre generosa, fiel, convicta elogia Nelida.