Juliana Krapp, Jornal do Brasil
RIO - Após a morte de Ana Cristina Cesar, seus manuscritos e demais inéditos ficaram a cargo de Armando Freitas Filho, poeta que teve sua própria produção literária marcada profundamente pelo desaparecimento da amiga. Nas cinco caixas cheias de papéis que seguiram para a casa dele estava ausente, no entanto, uma peça fundamental: uma pasta rosa, do tipo arquivo. Dentro dela, Ana fizera divisões como prontos, mas rejeitados , inacabados e rascunhos/primeiras versões . Seu conteúdo incluía cartas, bilhetes, frases soltas, relatos de viagens, desenhos, poemas e prosa curta. São textos que vão desde os tempos de colegial até seus últimos dias de vida.
Apenas em meados dos anos 80, a mãe de Ana, Maria Luiza Cesar, descobriu a pasta, em uma mala de roupas. Esta passou a integrar, mais tarde, o arquivo da poeta, no Instituto Moreira Salles (IMS), na Gávea. A pesquisadora Flora Süssekind chegou a usar alguns de seus textos em um ensaio. Mas a descoberta tardia permaneceu ainda um tanto obscura até que Viviana Bosi, professora de teoria literária da USP, fez uma visita ao arquivo. Ao encantar-se com o conteúdo da pasta, recebeu o convite para editá-lo.
Foi assim que nasceu Antigos e soltos (Ana Cristina Cesar. Org. de Viviana Bosi. Instituto Moreira Salles. 480 pág., preço a definir) que será lançado na quarta-feira dia em que a morte da poeta completa 25 anos às 19h30, no auditório do IMS. Na ocasião, haverá ainda um debate com Armando Freitas Filho, Clara Alvim e Viviana Bosi, e declamação de poemas por autores como Antonio Cicero, Claudia Roquette-Pinto e Francisco Alvim.
Antigos e soltos representa um projeto ambicioso. Não apenas pela reunião de tantos escritos inéditos, mas também pela posição assumida na edição: todos os textos aparecem ao lado da reprodução de seus fac-símiles. Por isso mesmo, como ressalta Viviana, não se trata exatamente de um livro, mas de uma oficina . Onde fica evidente, mais do que tudo, o processo de criação da poeta.
Um lugar-comum que já vinha sendo derrubado, há algum tempo, é o de que ela escrevia automaticamente conta Viviana. O conteúdo da pasta comprova que isso é falso: muitos textos aparecem, em várias versões, nos diferentes compartimentos da pasta. Ana trabalhava exaustivamente em seus escritos.
A pesquisadora teve uma tarefa árdua. Procurou selecionar os textos que pareciam vir dotados de maior pretensão literária; assim, deixou de fora uma grande quantidade de cartas e diários, que envolviam nomes de pessoas reais.
A grande surpresa dentro da pasta rosa, no entanto, é o provável projeto de um livro de ficção. Os textos relativos ao tema estão, inclusive, separados por Ana em uma categoria misteriosa, intitulada simplesmente O livro .
Alguns textos indicam que ela pensava em escrever um volume de ficção experimental revela Viviana. Trata-se de esboços mais narrativos, incomuns na obra dela. Há, ainda, uma série de reflexões sobre o que é poesia.
Em Projeto para um romance de vulto , por exemplo, Ana escreve: Você se importaria de ler algo sórdido? Não, não é bem algo sórdido, pelo contrário, é uma página importante que testemunha a obsessão de registrar todos os pormenores de uma mente e todo o desenrolar da história do pensamento .
Citações
Outro lugar-comum que a pasta rosa ajuda a derrubar é a idéia de que os autores da geração marginal, como Ana, não tinham cultura literária. Pois, entre os rascunhos amarelecidos, surgem com a letra da poeta citações de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Manuel Bandeira. Ana Cristina Cesar, como alguns especialistas já vêm dizendo, era dona de vasto repertório lírico.
No testemunho dos originais de Ana, no entanto, o que pula aos olhos é a presença da mão da poeta. Se a exposição e o ocultamento simultâneos de sua intimidade é marca da produção poética, a companhia do manuscrito, com o traço de próprio punho, acentua ainda mais aquilo que Viviana chama taquigrafia da vivência pessoal . Entre e por debaixo de rasuras e rabiscos, Ana parece apenas parece porque, sabemos, ela nos passa a perna de corpo presente. O que é, também, um risco.
Ela escrevia como se quisesse saltar por cima da linguagem e ir direto para as coisas, para o mundo define a professora. Queria dar a ver que transcrevia, de imediato, a experiência vivida.
Exemplo disso é a série de Poemas gatográficos , publicados postumamente em Inéditos e dispersos:
Ana queria se transformar na escrita do gato: queria se colocar entre o poema e o corpo da linguagem prossegue Viviana. Queria engolir o poema, capturar tanto o presente quanto a coisa em si. Queria mais que a representação: queria a apreensão. Mas esse salto é perigoso. O intervalo entre a palavra e o que ela representa é infranqueável.
Para capturar o presente, a escritora reescrevia, retocava, refletia posteriormente. Por isso, a publicação de textos claramente inacabados, alguns rotulados pela própria autora como rejeitados conduz, também, à questão ética: até que ponto a publicação do arquivo obscuro não agride a memória da poeta? Sobretudo quando se sabe que Ana C. utilizava a colagem como método, apropriando-se, não raro, de frases alheias, que ela anotava em seus cadernos. Em Inéditos e dispersos, como aponta Luciana di Leone em seu ensaio, aparece até uma frase de Clarice Lispector ( aqui os meus crimes não seriam de amor ), sem a identificação da autora.
Viviana justifica suas escolhas:
Acredito que ela gostaria que esses textos viessem à tona. Muitos estão inacabados, de fato, mas mais de uma vez aparece nas páginas a idéia de um índice, uma seqüência, um título de livro possível.
De fato, antes de uma das seqüências, a indicação de Ana: Cartas marcadas (título do livro) . Mais abaixo, a epígrafe Baralhar bem antes de ler .
Mesmo Luciana, que aponta em seu ensaio alguns deslizes nas edições póstumas de Ana, reconhece o valor da edição.
O importante é explicitar que, em se tratando de uma pasta que a poeta não quis divulgar em vida, esta representa a publicação de uma outra pessoa. Este não é um livro de Ana, mas o de um terceiro reforça. Mas só por nos apresentar esta questão ética, a publicação dos inéditos já é importante. A aparição desta pasta rosa é feliz para cada um de nós, e não para Ana.
Ítalo Moriconi vem em defesa de Antigos e soltos:
Os póstumos são sempre traidores da vontade do escritor. Não sabemos se Ana queria esses textos nas gavetas, no lixo ou no prelo. Mas, com certeza, ela sabia que os textos poderiam ser aproveitados.
Diante disso, quem parece dar a resposta é a própria Ana. Nos textos que abrem a obra, na série intitulada Três cartas a Navarro , indica: Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não permitas que digam que são produtos de uma mente doentia! Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo biografílico. (...) É preciso mais uma vez uma nova geração que saiba escutar o palrar os signos .
Ana C. é revisitada no aniversário de sua morte