Felipe Fortuna, JB Online
RIO - Em seguidas ocasiões, o poema Um lance de dados e o projeto do Livro, ambos de Stéphane Mallarmé (1842-1898), são considerados como etapas decisivas para a literatura de vanguarda e para a confluência entre palavra, imagem e som. Na percepção de Augusto de Campos, os pressupostos formais da poesia da era tecnológica poderiam ser encontrados na produção final do poeta francês. Com sua estrutura fragmentária, inovadora disposição espacial e utilização de variada tipologia, o poema, publicado na revista Cosmopolis em 1897, procurou romper com a linearidade e a ordem hierarquizada da leitura: questionou, do mesmo modo, os limites da página e o espaço dos versos. O acaso fez com que Um lance de dados só fosse conhecido como poema isolado em 1914; e a fatalidade fez com que o Livro sonhado pelo poeta se transformasse em obra póstuma ou melhor, que os fragmentos e apontamentos para a execução de um planejado Livro só viessem a público em 1957, graças à pesquisa de Jacques Scherer. Se a modernidade pode mesmo exibir as duas obras como precursoras, sobretudo pela ampliação da experiência poética e pelo recurso à técnica, não devem ser esquecidas outras dimensões que também se apresentam nos impasses e nas soluções trazidas pela poesia contemporânea, estejam ou não diretamente vinculadas às novas tecnologias.
Em A arte no horizonte do provável (1969), Haroldo de Campos não deixa de observar a existência de uma temática existencial ; porém, bem mais preocupado com os aspectos formais da obra, prefere salientar que o Livro de Mallarmé (...) refoge completamente à idéia usual de livro e incorpora a permutação e o movimento como agentes estruturais . Em seus comentários sobre uma nova física do livro , o poeta concreto provavelmente se alinha às longas digressões de Maurice Blanchot em O livro por vir (1959): digressões tanto mais atraentes na medida em que o crítico francês se pergunta sobre o futuro da literatura, ao considerar que os livros, os escritos e a linguagem estão destinados a mutações , sendo a dispersão um traço comum.
O Livro concebido por Mallarmé estaria destinado a ser único e absoluto, capaz de abarcar a totalidade segundo um ideal que foi transmitido pelo romantismo alemão. Maurice Blanchot reconhece os contatos mundanos do poeta francês com as doutrinas ocultistas, bem como as tentações ao esoterismo que muitas vezes tomaram a forma de versos herméticos e tortuosa sintaxe. Em The mechanic muse (1987), Hugh Kenner chega a comentar que o movimento simbolista arregimentou grupos de católicos malogrados, convencidos na infância de que existiam fórmulas verbais de eficiência . Cita o soneto de Stéphane Mallarmé com rimas raras em yx ( Puras unhas no alto ar dedicando seus ônix ) como exemplo de iconografia cristã , no qual alguns versos terminam com aquela letra cruciforme... Em outras palavras: por trás do Livro estaria um símbolo da Bíblia, no qual o verbo ou a poesia representaria a um só tempo o sagrado e a redenção. Bem mais do que qualquer outro crítico, Umberto Eco, em Obra aberta (1962), salienta o aspecto religioso do Livro, e afirma que este revelaria uma equívoca encarnação mística e esotérica de uma sensibilidade decadente ao fim de sua parábola .
Por outro lado, o aspecto da obra total e unitária talvez perturbe de modo irreparável o poeta moderno ou contemporâneo que dispõe, com palavras, do fragmento. Para esse poeta, a imprevisibilidade e mesmo a inovação jamais se relacionam a um sistema coeso, no qual se procura eliminar o acaso para alcançar a expressão pura. Pelo contrário, o acidental é a matéria-prima: imagine-se, por exemplo, o método de composição literária de Kurt Schwitters.
Ainda que persistam, em formas latentes ou não, as contradições de Stéphane Mallarmé em seu projeto final, nenhuma delas consegue comparar-se à condenação, pelo poeta, da linguagem utilizada pelos jornais e pelos posters, em oposição à linguagem da poesia, que deveria circular com restrições. Num texto intitulado Étalages ( Vitrines ), o poeta censura a presença da literatura nos jornais, além do comércio geral de livros na rua. A poesia, segundo entende, não deve estar presente ao espetáculo público do mercado: sua divulgação precisa sempre ser reduzida. Encontra-se assim o principal obstáculo aos que se permitem a fácil transposição do projeto do Livro para a internet, com seus hipertextos e suas páginas infinitas: o novo formato eletrônico não estimularia, do início ao fim, um rebaixamento estético? A disposição gráfica dos textos nas colunas dos jornais influenciou a idéia de leitura formulada pelo poeta francês, que atuava na imprensa com seus versos de circunstância e suas apreciações críticas. Mas sua fascinação pela imprensa era ambivalente: e Stéphane Mallarmé criticava muito mais a circulação do que o tipo de texto que cada um dos veículos, o livro e o jornal, estampava em suas respectivas páginas. Possivelmente ficaria surpreso se tivesse conhecimento de que o Livro tem sido com alguma freqüência mencionado como um precursor dos meios eletrônicos de divulgação e de circulação de textos, imagens e sons.
Entre os discípulos brasileiros e modernos do poeta francês, foi precisamente Haroldo de Campos quem acabou encaminhando sua obra poética rumo a uma síntese que também almejava a utopia de uma obra total ou, ao menos, de ambiciosa abrangência, como a unificar a poesia e a ciência, sem faltar à pulsação mística. Na etapa final da sua carreira, o poema-livro A máquina do mundo repensada (2000) já indica essa preferência: forma conservadora em tercetos rimados e a tarefa de amalgamar, em versos, os temas cósmicos presentes em Dante, Camões e Drummond, além da extensa vulgarização científica sobre novos conceitos de Física, o acaso e o caos. No sentido estrito da palavra, é inegável que Haroldo de Campos produziu um livro religioso ou mesmo um livro ecumênico, em sua acepção grega: aberto para o mundo inteiro. Assim teria sido transmitida a lição mística de Mallarmé, que por fim revelou não mais um poeta de vanguarda, porém um devoto aspirante à poesia universal, seguindo a tradição, tornando-a até mais arcaica para tentar atingir o insondável, o indeterminado e o futuro.