Ana Pires do Prado* , Jornal do Brasil
RIO - Metáforas históricas e realidades míticas: estrutura nos primórdios da história do reino das Ilhas Sandwich, de Marshall Sahlins, está finalmente sendo publicado em português, em cuidadosa edição da Zahar.
A tradução da antropóloga Fraya Frehse é primorosa e se preocupa em elaborar notas que ajudam o leitor na compreensão das ricas e elaboradas expressões do autor. No livro resultado ampliado de uma conferência honorária realizada em 1978 no encontro da Association for Social Anthropology na Oceania e publicado pela primeira vez em 1981 o antropólogo, professor da Universidade de Chicago, nos apresenta o argumento de que seria possível determinar estrutura na história e história na estrutura, uma das idéias que revolucionaram a antropologia da segunda metade do século 20.
As obras de Marshall Sahlins como Ilhas de história, Cultura e razão prática, História e cultura, editadas pela Zahar; Cultura na prática, editada pela UFRJ; e Como pensam os nativos , pela Edusp, nos introduziram a algumas das mais importantes teses do antropólogo sobre os primeiros contatos entre britânicos e havaianos.
A epopéia do capitão Cook
Sahlins narra e interpreta os acontecimentos que ocorreram nas viagens do capitão James Cook, explorador britânico, em 1779 às ilhas Sandwich, e as razões que levaram os havaianos a identificarem o inglês com o deus da fertilidade, Lono, e, posteriormente, o assassinarem misteriosamente.
Em Metáforas históricas e realidades míticas, os eventos que levaram à morte de Cook no Havaí são interpretados como metáforas históricas de uma realidade mítica.
Mito e realidade são dimensões que explicam os acontecimentos daqueles fatos trágicos e mostram como os havaianos incorporaram a dominação e expansão do capitalismo naquela parte do mundo.
Para compreender o evento, faz-se necessário entender a mitologia havaiana setecentista, principalmente a alternância ritual entre os deuses Lono e Ku. O deus Lono é deus da fertilidade e pacífico que chega às ilhas com as Plêiades. Ao fim do período, Lono se retira com a promessa de retornar no ano seguinte, e o deus Ku, junto com seu representante terreno, o chefe governante, recupera a ascendência e os havaianos retomam os sacrifícios humanos.
Segundo fontes havaianas e britânicas, a chegada e a circunavegação às ilhas pelo capitão Cook foram relacionadas aos movimentos rituais do deus Lono. O local escolhido para ancorar os navios era o lar dos sacerdotes de Lono, e Cook foi venerado como um deus.
Deus assassinado
Entretanto, depois de partir como deus, o explorador britânico retorna às ilhas devido a um acidente com o mastro de seu navio e é assassinado. O evento, que não foi presenciado pelos marinheiros britânicos a bordo do navio HMS Resolution, foi retratado na tela de John Webber do século 19 que mostra a cena do explorador britânico sendo morto por um chefe havaiano.
Cook, em seu retorno imprevisto à ilha, chegou em pleno ciclo ritual do deus Ku e, seguindo o mito, foi percebido como o deus que retornava para usurpar o poder e deveria, então, ser morto pelo atual chefe.
Cook e os marinheiros britânicos agiram a partir de seus próprios rituais práticos para lidar com os nativos e não pressentiram o perigo que os esperava naquela praia.
Os havaianos, por sua vez, seguiram seus rituais e viram os acontecimentos a partir de seus mitos. Nesse sentido, o destino de Cook foi a imagem histórica de uma realidade mítica.
Em um jogo dialético entre sistema e prática ou entre estruturas de conjuntura e a ordem cultural recebida introduziram-se novidades no sistema de classe e de relações de poder dos havaianos.
O fio condutor da argumentação do antropólogo é a tensão entre os diferentes tabus existentes na cultura nativa e a ação dos homens após o contato entre britânicos e havaianos.
Na concepção havaiana, os chefes controlavam o comércio das mercadorias, e as mulheres estavam sujeitas a diversos tabus, como, por exemplo, não comer na presença de homens.
Tabu é parte integrante da determinação de categorias como chefe, pessoas do povo, homens ou mulheres, e constitui o princípio dessas distinções. No entanto, a chegada dos estrangeiros trouxe uma situação inusitada com as mulheres, desejosas de gerar filhos dos deuses, freqüentando os navios, comendo alimentos proibidos na presença dos britânicos, recebendo em troca mercadorias valiosas para os havaianos.
Rompia-se assim o comércio exclusivo dos chefes, a hierarquia entre homens e mulheres e a relação entre os havaianos e britânicos. As ações dos homens deslocaram o sobrenatural e o ritual para o material e o político.
Disputas acadêmicas
Para Sahlins, as categorias e valores podem ser reordenados simbolicamente. Os signos em ação têm seus significados tanto reproduzidos como transformados por interesses e ajustados segundo o contexto. As ações guiadas culturalmente e as relações resultantes da própria prática a estrutura da conjuntura colocam em conflito as categorias culturais e transformam as percepções e condutas de uns em relação aos outros.
No processo histórico, há um diálogo entre a prática da estrutura e a estrutura da prática.
Interessado nas interlocuções entre a história e a antropologia, Sahlins pretende compreender como os eventos são ordenados pela cultura e como, nesse processo, a cultura é reordenada, revalorada. Inverte a famosa assertiva estruturalista de quanto mais muda, mais permanece a mesma coisa , para seguir a mesma lógica ao dizer: Quanto mais permanecem as mesmas, mais elas se transformam .
Os eventos descritos sobre aqueles anos finais do século 18 marcaram o início da expansão capitalista naquela região modificando as relações entre havaianos e britânicos.
As idéias contidas no livro propiciaram um importante debate no fim do século 20. De um lado, Sahlins com sua interpretação sobre a deificação do capitão Cook e, de outro, o antropólogo Gananath Obeyesekere, professor de Princeton e natural do Sri Lanka, argumentando falar como nativo, sendo cingalês.
No livro The aphoteosis of captain Cook, de 1992, Obeyesekere critica Sahlins por sua interpretação etnocêntrica e eurocêntrica dos havaianos. Como resposta, em 1995 Sahlins escreve o belíssimo e já citado Como pensam os nativos aqui publicado pela Edusp em 2001. Neste ensaio, demonstra as incoerências de Obeyesekere por meio de farta documentação, reafirmando que Cook fora interpretado como um deus pelos nativos.
Além de aludir a debates e a questões teóricas capitais para a antropologia, Metáforas históricas e realidades míticas refere-se a estruturas e a permanências, à história e à mudança, às relações entre processos do presente e estruturas do passado.
Na realidade atual, são freqüentes os contatos e conflitos culturais, e a proposta de uma antropologia interessada na transformação histórica e no contato cultural é fundamental. Sahlins, um dos mais importantes antropólogos da atualidade, relativiza o ponto de vista ocidental sobre os outros.
Dá voz aos nativos e a sua cultura, e encara o contato cultural como potencialmente transformador e não necessariamente dominador. Daí a oportuna publicação em português deste livro cujas idéias transformaram a antropologia, que nunca mais foi a mesma.
* Pós-doutoranda em sociologia e antropologia do IFCS/UFRJ