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Brincando com Camões

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Sergio Pachá*, JB Online

RIO - Desde antes de Platão era lugar-comum, entre os gregos, dizer-se que Homero fora o educador de toda a Hélade; e isto não apenas em termos estéticos, senão também éticos, como guia e norma de vida. Mudados os tempos, mudadas as vontades, outro tanto não poderíamos dizer de nosso épico, Luís de Camões: embora Os lusíadas sejam também, como a Ilíada e a Odisséia, um repositório de alta beleza poética entretecida com lições de moralidade cívica e privada, há muito que nem sequer poderíamos dizer o mesmo que Otto Maria Carpeaux dizia ocorrer às obras de Goethe nos países de língua alemã: serem as mais citadas e as menos lidas.

Nestas circunstâncias de esquecimento e abandono institucional das belas letras, é idéia digna de aplauso pôr nas mãos das crianças uma adaptação d'Os lusíadas proporcional a sua capacidade de compreensão. Mas, apresso-me em acrescentar, é também idéia ambiciosa. E de não fácil execução: trata-se de uma obra polifônica, por assim dizer, em que várias ordens de eventos se entrelaçam numa tessitura tão complexa quanto um coral de Bach. E, como tal, acham-se muito além do entendimento linear de uma criança.

Sabedora disso, Leonoreta Leitão tomou o partido, a meu ver correto, de, suprimidos praticamente todos os excursos históricos do poema, quer na forma de narrativa de acontecimentos passados, quer na forma de profecia de eventos futuros (relativamente ao momento em que são anunciados por Júpiter, ou por Tétis, ou pelo Adamastor, não, porém, relativamente à época em que Camões compõe a obra), usar a viagem de Vasco da Gama, de Portugal à Índia, como fio condutor da narração.

Paralelamente, de forma simplificada, vem o enredo de desígnios e intrigas das deidades olímpicas, ora favoráveis, ora hostis aos navegantes: ciladas e mortais perigos maquinados por Baco e desfeitos por Vênus e, no fim, o justo prêmio das ações heróicas, aparelhado pela deusa de Citera numa ilha que, por motivos óbvios, a autora apresenta expungida de qualquer erotismo, começando pelo próprio nome: de Ilha dos Amores converte-se, aqui, em Ilha da Boa Vida um inocente locus amoenus, onde deusas e navegadores confraternizam .

A autora inseriu em seu texto, redigido na linguagem adequadamente plana que se usa com as crianças, trechos do próprio poema, cuja extensão varia de dois versos a mais de uma estância de oito versos. Ora, Os lusíadas são uma obra épica do século 16, composto na linguagem de seu tempo por um poeta de sólida formação humanística, que não hesita em servir-se de freqüentes latinismos lexicais, sintáticos, semânticos e até morfológicos, para nada dizermos de termos em desuso e até mesmo de vocábulos ainda hoje correntes no português de adultos letrados, mas de todo em todo desconhecidos a crianças, alfabetizadas de pouco. Palavras como generoso , latinismo que significa de nascimento nobre ; levar, no sentido de levantar ; ou agasalhar , no sentido de acolher . Compreendo e compartilho as razões que induziram Leonoreta a expor os pequenos leitores à música incomparável de Camões. Mas, filóloga clássica, deve saber que est modus in rebus e que, se os próprios contemporâneos de Camões, desde a terceira edição, em 1584, já recorriam a notas explicativas, não parece muito lógico que, hoje, crianças portuguesas, brasileiras e africanas sejam confrontadas com o clássico dos clássicos de nossa língua sem qualquer adjutório.

Outro ponto digno de reparo são certas afirmações equivocadas que se imiscuíram no texto e para as quais eu não tenho a menor explicação. São várias. Mas me contentarei com três exemplos. À página 9, lemos que Camões descreve a partida dos navegadores da Torre de Belém, em Lisboa . Isto é impossível. A frota de Vasco da Gama levantou âncora aos 12 de julho de 1497 e a Torre de Belém começou a ser construída em 1514.

À página 11 lê-se: As naus não podiam chegar até a areia; por isso os homens iam em batéis para embarcar nelas já em alto-mar . Adiante, somos informados de que ali mesmo, em Belém, se destacou entre o público um velho de aspecto respeitável, cujas palavras os navegadores ouviram claramente no mar . O Tejo, em Belém, tem mais de dois quilômetros de largura. As naus estavam fundeadas um pouco distantes da praia, a uma distância que permitia aos homens embarcados ouvir distintamente o que se dizia em terra. Lembro que o mar dista cerca de 25 quilômetros da Praia do Restelo. O mar-alto, muito mais do que isso. Fundear as naus no mar-alto, porque o Tejo (onde hoje entram e fundeiam transatlânticos) não tinha profundidade compatível com o calado delas seria um disparate. Alcançá-las em batéis a remo, uma loucura. E de lá ouvir o que, na praia, dizia o Velho do Restelo...

A página 12 lê-se: A descoberta do caminho marítimo para a Índia e de novos mundos foi uma aventura científica a mais importante da [sic] face da Terra no século 16 . Três reparos. Primeiro: a descoberta do caminho marítimo para a Índia ocorreu no século 15. Segunda: não foi uma aventura científica. Foi um alto feito de exploração do planeta, que lançou mão das mais avançadas técnicas de navegação de seu tempo e que tinha por objetivo encontrar novas rotas para o comércio europeu das especiarias asiáticas. Terceira: a mais importante aventura científica do século 16 foi a mudança de paradigma nas ciências da natureza representada pela passagem da cosmologia geocêntrica de Ptolomeu à cosmologia heliocêntrica de Copérnico. O resto é retórica.

* Lexicógrafo-chefe da ABL. Autor do

verbete "Camões" da Enciclopédia

Mirador Internacional