Mario Marques, Jornal do Brasil
RIO - Oi, tio . Essas duas palavras, puídas em voz arranhada, acompanhadas de um tapinha troncho nas costas do sujeito, no Bar Avenida, em Pinheiros (SP), tiraram a vida dos dois personagens do preto e branco. Na cadeira, sentado, estava Wanderson Clayton (Eller).
Em pé, atrás, à espera do abraço, Cássia Eller. Em 1987, ele era roadie-produtor do grupo 14 Bis, tio da moça então desconhecida e tinha 29 anos; ela dava pinta em botecos paulistas, colecionava 26 anos e era a sobrinha desgarrada do pai militar.
O esbarrão boêmio mudaria a vida do dois, três anos depois. Até Cássia lançar o primeiro disco, em 1990, Wanderson trabalharia obcecadamente para provar que ela viraria a maior cantora do país.
Desde sua morte, a 29 de dezembro de 2001, o produtor (e tio) se trancou em silêncio em seu apartamento na Barra, Zona Oeste do Rio, com suas 2 mil fotos, 200 horas de gravações inéditas e a (valiosa) história particular com Cássia.
Não é pouca coisa. Agora resolveu pôr na rua os encontros e desencontros com todos os cuidados possíveis. Anuncia uma biografia para breve.
Wanderson é irmão de Altair, pai de Cássia, militar da reserva do Exército, ainda vivo e morando em Fortaleza. Nasceu em Conselheiro Pena, cidade pequena no leste de Minas Gerais.
Quando fez 3 anos, nasceu Cássia, na Vila Militar de Deodoro, Rio. Foi uma festa na família. Wanderson foi posto num carro com outros parentes, que entupiram a casa para festejar a chegada de Cássia.
Ela não ficaria muito tempo naquele conjunto de casas militares na Zona Norte da cidade. Mudaria-se para Belo Horizonte aos 4 anos. Para lá rumou também Wanderson. Começaram a conviver.
Pareciam mais primos do que tio e sobrinha. Jogavam bola, empinavam pipa e ouviam música. Foi o tio quem a aplicou de Beatles e Led Zeppelin mais tarde. E lhe ensinou os primeiros acordes. O primeiro instrumento de Cássia, entretanto, foi uma bateria. Feita de latas de óleo quadradas.
Tudo o que ouvia passava para a Cássia lembra Wanderson.
Ela me tratava como um amigo, mas sempre me chamou de tio.
Wanderson fincou raízes em BH.
Trabalhou em produção com Lô Borges, Milton Nascimento e Flávio Venturini pós-Clube da Esquina, na década de 70. Cássia se mudou mais uma vez. Foi parar em Brasília. Lá virou corista de Oswaldo Montenegro, batia ponto nos botecos candangos e punha voz num espetáculo em que interpretava Edith Piaf. Desencontraram-se.
Wanderson deixou BH e foi tentar a vida em São Paulo. Na noite do tal tapinha nas costas, ele morava num hotel na Rua Frei Caneca. E se virava como podia com o 14 Bis.
Ela se virava como podia e também como não podia. Vida apertada. Cássia chamou-o para seu (pequeno) apartamento, na Rua Augusta, onde já morava com a companheira, Maria Eugênia Vieira Martins, a Eugênia. Mal chegara, a cantora saca o violão num canto e começa a entoar Beatles.
Fiquei assustado, chocado com o que ouvi. Aí ela falou: Poxa, você gostou, tio? Me arruma um emprego num boteco aí! . E eu: Que boteco o que, garota! Vou transformar você na maior cantora do país .
Wanderson tratou de botá-la em estúdio. Tentou primeiro no do cantor Dudu França. Depois, no de Marcus Vinicius, amigo próximo.
De lá saiu com um registro em fita rolo com 10 canções ao violão, as mesmas que iriam para seu primeiro disco, faixas de uma turma distante dos holofotes do pop vigente (Mario Manga, Bocato, Arrigo Barnabé, Hermelino Neder), estabelecida em São Paulo. Enquanto dava um jeito de arrumar US$ 50 para bancar a edição e levar o material para casa, Cássia voltava a Brasília. Estava desistindo da vida ao léu, sem perspectivas.
Embora tivessem feito alguns shows juntos, ela não segurou a ansiedade. Wanderson também não. Pegou o ônibus direto para o Rio armado de uma fitinha cassete com as músicas e de um vídeo VHS com um show no Aeroanta, na abertura de uma apresentação de Wagner Tiso.
O envelope pardo que carregava debaixo do braço para entregar ao diretor artístico Mayrton Bahia, na antiga Polygram, já com sede na Barra, era, para ele, um tesouro valioso.
Eu nem marquei reunião conta. Fiquei umas seis horas esperando. Eu o conhecia da EMI, quando o 14 Bis gravou lá. Assim que chegou, disse a ele que Cássia era a maior cantora do Brasil, vi que ele não levou muita fé e fui embora. Quando cheguei na casa do amigo em que estava hospedado, em Santa Teresa, o telefone tocou. Era o Mayrton. Pediu para eu voltar na mesma hora. Quando entrei na sala dele, ele jogou um contrato de três discos na minha frente e pediu para eu ligar para ela. Foi na mesma hora: Cássia, vamos gravar pela Polygram. Tô te mandando a passagem para você vir para o Rio. Ela disse: De avião, tio, que é isso? .
Partiu-se para o lado prático. Wanderson tinha dificuldade em arrumar uma banda para acompanhar Cássia. Ela não falava, não se comunicava, não dizia o que queria, que tipo de som preferia.
Na terceira leva de músicos testados, falei: Com quem você consegue conversar, Cássia? Diz! .
O guitarrista Nelson Faria e o baixista Jorge Helder foram os primeiros apontados por ela. Depois chegaram Élcio Cáfaro e Zé Marcos. Com exceção desse último (mineiro, mais pop, que já tocara com Marco Antonio Araujo), os outros eram de uma escola jazz/instrumental.
Com eles, trancafiaram-se num estúdio do Cosme Velho para ensaiar as mesmas 10 músicas apresentadas ao violão a Mayrton. O diretor artístico da Polygram também fazia questão de não mover uma palha no que ouvira. Tratava a moça como um diamante a não ser lapidado.
Na apresentação à imprensa, no extinto Mistura Fina de Ipanema, já em 1989, ainda sem o disco lançado, Wanderson não sabia que roupa Cássia usaria. Ainda não se definia sua identidade.
Ela usava umas calças mamulengas rotas, manchadas, horríveis. Aí entrei na Yes Brasil e comprei um vestido e um sapato alto para ela. Na primeira música do show, a Cássia tacou o sapato longe lembra.
No camarim, com dificuldade para respirar, diante da vibração dos (novos) fãs, Cássia recebia a notícia de que Wanderson seria o produtor do disco de estréia: Tio, que do caralho , teria dito.
Falei para mim mesmo: nunca entrei num estúdio para gravar com ninguém, meu Deus diz Wanderson, que queria trilhar o disco num corredor Bring on the night, o disco de Sting com jazzistas, de 1986, que virou clássico.
Mayrton Bahia conta o que procurava:
Quando o Wanderson me mostrou a fita, vi que era algo bem moderno, mas com uma atitude rock'n'roll. Tinha gente na gravadora que queria a Cássia gravando um som pop, interferir no repertório, e eu não. A gravadora não acreditava nela, queria que ela tivesse bons modos, que ela fosse mais menininha.
Nos estúdios da Polygram gravaram das 18h às 6h por meses. Além da turma da vanguarda paulista, Wanderson convidou Frejat para o disco.
Queria uma música de sua autoria. O guitarrista do Barão ofereceu Barraco, parceria com Jorge Salomão. A versão, como boa parte das canções, tinha pegada mais jazzy. Frejat sugeriu mudar, trazê-la de volta à sua essência: o rock'n'roll.
Os caras eram jazzistas, daí tentei sugerir a levada com mais groove. Eles não gostaram muito, mas depois entenderam a onda e ficou tudo bem recorda Frejat, que contou com a participação de Tom Capone (foi ali que o produtor e guitarrista decidiu também se estabelecer no Rio) e de Dunga (baixo) e McWilliam (bateria). Lembro que pedi para o Jorge Helder fazer uma introdução de baixo de um jeito e ele disse: Não vou fazer isso de jeito nenhum . Achei até normal.
A capa do disco também foi problema. Seria assinada pelo artista plástico André Peticov. Mas não foi aprovada nem por Cássia, nem por Wanderson, nem pela gravadora.
Optou-se por uma foto da mineira Eliane Torino num show no Crowne Plaza, em São Paulo. Na contracapa, Cássia foi jogada nas areias da Barra para chutar o balde. Literalmente.
A idéia, de Peticov, dessa vez passou. Durante duas horas, Cássia bicou a lata para o alto.
Com tudo pronto, faltava saber como seria a estratégia de marketing.
A Polygram, numa conversa com a Globo, acertou a regravação de Meu bem, meu mal, novela da Globo de 1990. Cássia e Wanderson disseram que só aceitariam se pudessem fazer com arranjo da banda. Voltaram ao estúdio e rasgaram a canção, numa versão pedrada, quase um heavy metal e cheio de gritaria. Na apresentação à Globo e à Polygram, silêncio total.
Semanas depois, o cantor Marcos André faria outra versão. Que entraria, enfim, na novela. A faixa inédita está guardada na casa de Wanderson.
Era quase hardcore. A Cássia berrava conta o produtor.
Wanderson, de certa forma, foi megalômano. Gravou o primeiro clipe de Por enquanto (de Renato Russo, cuja versão acabou sendo a registrada em São Paulo, ao violão) e contratou o diretor Luiz Carlos Lacerda para fazer os 11 clipes do disco.
Gastou a verba da gravadora nisso e o resultado não foi aprovado.
Depois, com a ajuda de um amigo, peguei uma grana e investi num marketing nacional e fiz seis clipes depois de Por enquanto, que estreou no Fantástico e depois entrou na MTV. O disco vendeu 60 mil cópias e fizemos uma turnê nacional muito bem-sucedida.
Wanderson gravou todos os shows daquela e da turnê de Marginal (92), o disco posterior. Com tudo em casa, espera o melhor momento para lançar o material. Tem gravações inéditas, releituras de Beatles e Jimi Hendrix, montes de versões. Quer contar tudo numa biografia da cantora, a ser lançada em 2009.
Nunca me senti à vontade para falar dessa minha história com ela. Mas ela precisa ser contada.
A do primeiro disco está contada. Quer dizer, parte dela está aqui. Cássia Eller lançou oito. O último, Acústico MTV, vendeu mais de 500 mil cópias. Cássia morreu aos 39 anos, a dois dias do réveillon de 2001.
Teve uma parada cardiorrespiratória, possivelmente decorrente de estresse. Inicialmente veiculava-se a versão de que teria morrido de overdose de drogas. Descartada pelo laudo pericial do Instituto Médico-Legal do Rio, foi apontada então morte por erro médico. O inquérito foi arquivado pelo Ministério Público.