Dira Paes botou Berlim no bolso ao viver uma Joana D’Arc de repartição pública em “Divino amor”, uma ficção científica travestida de crônica de costumes (tipo “Esposas em conflito”, de 1975). Espécie (crítica) de “THX1138” (o marco zero de George Lucas) meets “Fala que eu te escuto”, programa de evangelização mais popular (e exótico) da TV brasileira, a sci-fi dirigida por Gabriel Mascaro começou sua carreira por Sundance, em Park City, nos EUA, e partiu de lá diretamente para a mostra Panorama do 69º Festival de Berlim, onde destacou-se como um estandarte da inquietação de nosso país em relação ao avanço do conservadorismo moral. É um estandarte também da evolução narrativa de Mascaro, responsável pelo precioso “Boi neon” (prêmio especial do júri nos Horizontes de Veneza, em 2015). O filme entra em cartaz em circuito verde e amarelo nesta quinta, 27 de junho, carregando, em sua mirada futurista, de distopia, uma sequência na qual Joana, funcionária de cartório encarregada de cuidar de separações faz um circuito de exercícios aeróbicos como se estivesse em vídeo da Jane Fonda dos anos 1980. Veste collant, faz posições repetitivas num Kumon de disciplina do corpo. Isso porque a alma de Joana já foi disciplinada há tempos, num pacto selado com Cristo e com a segurança de um mundo avesso aos quebra-molas do antropocentrismo. No mundo dos homens, em ebulição, o prazo de validade de tudo é curto, até das relações amorosas. No mundo do Senhor, tudo fica para sempre, ainda que o preço a se pagar por isso é anular diversidades. Viver Joana foi o fardo dionisíaco que Mascaro confiou a Dira, numa atuação em estado de Graça (aquela que vem do Alto, do Olimpo das interpretações memoráveis).
Assim como a ginástica de Joana parece VHS da Turner Classics, o universo religioso em que Joana e seu marido, o florista Danilo (Julio Machado, sempre afiado, em todas as vezes em que faz da palavra um lugar de perturbação), frequentam também é estilizado. Parece o Festival da Canção de San Remo... ou o Show de Calouros de Silvio Santos (programa muito popular no Brasil). Parece conceitualmente, pois a direção de arte de Thales Junqueira, potencializada na fotografia de Diego García, deixa nítido que existe ali um pensamento muito filosofado (e bem abrasivo) de usar um colorido eletrônico, lisérgico e neon, para aproximar o culto daquele futuro fundamentalista (estamos no Brasil de 2027) de uma rave.
Nessa festa da fé que nunca termina, Joana dá glória aos Céus pelo que tem, mas chora pelo que ainda não veio: um filho. Não por acaso, Danilo se submete a uma série de tratamentos com luz e calor, em seus testículos, a fim de preparar sua “semente” para o Senhor. Há um primeiro tomo - no roteiro escrito por Lucas Paraízo, Mascaro, Rachel Ellis e Esdras Bezerra, marcado por diálogos primorosos – de nos levar a conhecer aquele mundo, como numa radiografia do que o Brasil pode se tornar, tendo a angústia de Joana como bússola. Ser mãe é a Estrela de Belém de sua vida. Todo o primeiro ato é dedicado a conhecermos onde ela vive e quem é. Mas aí vem uma virada... na intervenção do Espírito Santo... Aí, todas as certezas vão por terra e o filme engata uma curva metafísica de mistério, nas linhas do suspense. Tudo fica tenso, tudo parece caminhar para o inusitado, as incursões de Julio Machado ficam ainda mais doídas - e potentes. Ali, nesse ponto do filme, a explosão sinestésica de sensações físicas se casa, dramaturgicamente, com o efeito de surpresa de uma dramaturgia de viradas.
O que vem pela frente é menos catarse e mais delírio fundamentalista, num alerta de Mascaro o que pode ser o amanhã. Delírio que aproxima a atuação de Dira de Maria Falconetti, em “A Paixão de Joana D’Arc” neste “Ordet” caboclo.
“Divine love”, como o filme é batizado no exterior, é uma alegoria moral sobre o que Mascaro define como “biopolítica, a relação entre corpo e Estado”. É uma alegoria sobre práticas fundamentalistas como um exercício de alienação e de intolerância num tempo em que a fé deveria cumprir sua vocação transcendente de libertação.
Cotação: XXX