Veterano do cinema brasileiro, o ator Leonardo Medeiros, 54, se transformou no francês Allan Kardec (1804-1869) para contar a história do cientista e pedagogo que fundou a doutrina espírita, mas acabou fadado ao esquecimento em seu próprio país. O longa, dirigido por Wagner de Assis, estreia dia 16 de abril, nos cinemas.
Medeiros estudou muito para o papel, mas conta que conhecia bem Kardec. Nasceu em uma família espírita, apesar de ter sempre se mantido cético. "Cresci em uma família espírita e sempre fui bombardeado por informações. Sempre rejeitei a doutrina, mas acabei parecido com o Kardec, já que sempre fui um garoto muito ligado à ciência, muito cético. Fiquei a vida inteira esperando um sinal, e ele nunca veio. Pode ser que isso seja um filme", brinca o ator.
O filme, baseado no livro "Kardec: A Biografia", do jornalista Marcel Souto Maior, narra a trajetória do professor Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869) -que utilizou o pseudônimo Allan Kardec para escrever os livros espíritas. Cientista e cético, ele se sentiu curioso a entender de forma racional os movimento das 'mesas girantes' que tomavam toda a Europa no fim do século 19. O estudioso acabou tendo a certeza de que era possível fazer contato com os espíritos e deu início a essa discussão com a obra livro "O Livro dos Espíritos" (1857).
A personalidade de professor e cientista já era conhecida pelo ator. "Minha mãe é sobrinha do Eurípedes [o médium Eurípedes Barsanulfo, 1880-1918], claro que ela queria me aproximar das crenças dela e ela dizia que Kardec também era um cientista como eu. As pessoas confundem muito a figura dele como um místico e isso não é verdade."
Construir o personagem não foi tão fácil. Havia muito pouca informação sobre Kardec, além do estudioso. "A gente tem muitas fotos de uma época em que não tinha sorriso nas imagens. Parecer sério era importante, e o Kardec tinha uma responsabilidade incrível, porque ele estava à frente de uma doutrina que não era reconhecida. Ele tinha que parecer sério e severo", explica o ator.
A biografia de Souto Maior é a melhor referência para contar a história de Kardec, segundo o ator. "Essa biografia é interessante porque é imparcial. Ela não é escrita da perspectiva doutrinária ou religiosa, então, ele fica distanciado. Ele não quer converter ninguém, fica atento aos fatos e não tem sensacionalismo. Ela coloca a trajetória dele de uma forma linear e fica compreensível que ele era um homem corajoso. Ele levantou uma bandeira sozinho e segurou uma barra tremenda. Ele teve de manter a seriedade da ciência."
À procura de mais informações, Medeiros leu outras biografias, além da escrita por Souto Maior. "Indicaram uma biografia mais doutrinária que não me interessou de imediato, mas que teve um parágrafo que me ajudou muito. Era um amigo descrevendo o Kardec, de como ele era bem humorado e como a presença dele animava todo o ambiente. Ou seja, ele era um homem sério, mas que tinha bom humor e que até contagiava o lugar que ele chegava."
Mesmo após o filme, o ator mantém um certo distanciamento da doutrina, mas vê com bons olhos o lançamento de uma biografia sobre Kardec. "Fiquei surpreso com o filme, porque ele não é sensacionalista, não pesa a barra e não quer doutrinar ninguém. É baseado em fatos históricos. E o espiritismo é tão importante para o Brasil, mesmo quem não é adepto respeita a doutrina. O país tem uma relação saudável com o espiritismo", opina o ator.
Medeiros diz que também é simpático, não só por ter uma família espírita. "Os espíritas são bons, caridosos, gostam do outro, escutam. Tem essa parte da ética que é muito bonita, não tem como você sofismar. Eles veem a morte de uma outra forma, não há desespero. Só a parte metafísica que é um pouco mais complicada para mim", afirma Medeiros.
O ator precisa do sucesso de Kardec, já que não tem previsão de novos trabalhos. "A gente não tem muito controle. Tenho sorte porque fiz uns 60 filmes - a maioria de baixo orçamento que ninguém viu. Fiz poucos filmes como esse que tem uma retaguarda de uma grande produtora. Estou botando fé nesse filme porque estou totalmente desempregado. Os dois projetos que eu tinha caíram, por causa dos cortes da Ancine. Todo mundo me diz que sou um grande ator, mas eu queria ter a minha parte em trabalho. Se eu fosse americano eu estava morando em Beverly Hills, tenho muitos prêmios aqui e fora do Brasil", afirma Medeiros.
Visto em novelas e séries de TV, Medeiros diz que prefere trabalhos curtos. "Para gravar novela está complicado, porque eu moro em São Paulo, tenho filho pequeno. Teria que ficar muito tempo no Rio. Acho que neguei tantos papeis, que acabaram desistindo", brinca o ator.
EDUCAÇÃO E FEMINISMO SÃO TEMAS ATUAIS
Antes de usar o pseudônimo de Allan Kardec e se ajudar a disseminar a doutrina espírita, o francês Hippolyte Léon Denizard Rivail foi um professor que marcou o ensino francês. Já era autor de diversos livros e tradutor. Era adepto ao método de ensino de Johann Heinrich Pestalozzi (1764-1827) e teve de enfrentar a interferência da igreja católica nas escolas de sua época.
"Esse tipo de abordagem tem muito no Shakespere. São assuntos tratados há muito tempo e que ainda não foram resolvidos. Um deles é o da educação, da doutrinação dentro da escola, sendo ela de um lado ou do outro. Ainda nos debatemos com essa questão, de que é uma busca de acabar com o senso crítico das crianças. O filme mostra que isso começou com o Pestalozzi - que era um mestre da pedagogia como Freire [Paulo Freire], e ainda estamos nesse debate", afirma o ator.
A mulher de Kardec, a professora Amélie Gabrielle Boudet (1795-1883) teve um papel importante para a doutrina espírita e é bem retratada no longa. "Estamos vivendo um momento em que a discussão do gênero está tão em alta, que foi inevitável a gente perceber que ela foi uma mulher importante. Foi uma época em que não se dava importância a elas, que ficavam meio escondidas. Mas as mulheres fortes sempre existiram, e todos envolvidos no filme tiveram esse olhar de dar a devida relevância", lembra.