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Crítica - Rocketman: Musical e biopic, dois corações batem em corpos separados neste tributo a um midas do pop

*** - Bom 

David Redfern/Redferns -
Taron Egerton vive Elton John em Rocketman, um novo Bohemian Rhapsody a caminho
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Embora entorne da mesma torneira de onde veio “Bohemian Rhapsody”, unido à cinebiofrafia do Queen por códigos de um gênero, o biopic musical, e pela direção artística do inglês Dexter Fletcher, “Rocketman” não borbulha como seu antecessor, nem exultando picardia, nem gotejando ousadias, uma vez que optou por um recorte narrativo mais engessante, que faz da forma um opressor das liberdades, as morais e as dramatúrgicas. Não estamos diante de um filme de autor, calcado numa antologia de memórias sensoriais como foi o fenômeno popular sobre os feitos de Freddie Mercury (que custou US$ 52 milhões e faturou US$ 903 milhões). A releitura alegórica das peripécias criativas e emotivas de Reginald Kenneth Dwight, aka Elton John, está mais preocupada em ser uma ponte de fatos reais com a tradição dos musicais, não obedecendo códigos realistas, nem respeitando precisões históricas.

Bom... o filmaço de Bryan Singer sobre Mercury também não se preocupava em ser acurado com a cronologia factual na qual se inspirou (vida a troca de datas do Rock in Rio), mas, ali, havia uma ordenança autoral em prol da mitomania. Singer é um realizador sobre pessoas que iludem para se inventar. Não há ainda um traço identitário perceptível no cinema de Fletcher, ator de “Caravaggio” (1987) e “Jogos, trapaças e dois canos fumegantes” (1998), que lançou-se em uma carreira paralela de produtor e de realizador. Foi ele quem produziu “Bohemian...”, desenhando o perfil final do longa-metragem depois que Singer acabou afastado por problemas pessoais e profissionais com a equipe. Desde 2011, Fletcher passou a dirigir, tendo arrebatado elogios por “Voando alto”, no qual apresentou para a indústria audiovisual os múltiplos talentos de Taron Egerton, ator escalado aqui para viver sir Elton.

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Taron Egerton vive Elton John em Rocketman, um novo Bohemian Rhapsody a caminho (Foto: David Redfern/Redferns)

A escalação dele em si já foi um acerto, o maior. Não se trata de avaliar mimetizações dos gestos de Elton. Trata-se da maneira como Egerton esculpe o desenho da alma do ídolo pop, com uma passionalidade transbordante.

Envolvido desde setembro numa turnê de despedida nos palcos, com previsão de rodar 300 cidades do mundo, o cantor e compositor inglês de 72 anos participou de maneira incisiva no projeto, orçado em US$ 40 milhões, não apenas como fonte para a dramaturgia, mas como uma baliza para a autonomia de Fletcher (plena) na reconstituição dos anos 1960, 70 e 80 e 90 sem que se resvalasse em alguma patrulha. Sexo, drogas e, sobretudo, rock’n’roll ganharam um sinal verde para povoar a tela.

O problema do resultado é que, no trânsito pela suspensão da descrença inerente aos musicais, com o lirismo inerente ao filão (quebrado apenas em joias como “All that jazz” e “Cabaret”), os excessos perderam a tinta, gerando um sangue ralo, ou seja, a ferocidade que poder-se-ia se esperar desse mergulho no lado sombrio da voz por trás de “Your song” se edulcora. Tudo parece doce demais, ainda que Taron se agarre ao amargor, no empenho de expressar a incapacidade de Reginald Kenneth Dwight para se aceitar Elton, para se aceitar Reginald, para se aceitar feliz.

Mas apesar da dissonância, Fletcher constrói sequências memoráveis. O batismo de Elton para o estrelato, com “Crocodile Rock”, com a plateia flutuando, candidata-se à eternidade. Há uma força similar na sequência em que ele entra numa reunião dos Alcoólicos Anônimos, com uma de suas fantasias, para assumir seu vício. E não há possibilidade de se arrancar a sequência em que se ouve “I’m still standing” da cabeça. No roteiro, subserviente demais à dinâmica dos números de canto e dança – como se espera de um bom musical, mas não de um biopic -, a rejeição que sempre marcou sua rotina com o pai e a relação um tanto distante com a mãe (Bryce Dallas Howard, perfeita) fizeram com que Reginald buscasse outra identidade. Daí virar Elton. No filme, esse processo se mistura com a caça ao sucesso, mas também com a solidão. Um dos destaques dessa travessia é o casamento de alma com o letrista Bernie Taupin, papel que Fletcher confiou a um luminoso Jamie Bell, o astro mirim de “Billy Elliot” (2000), hoje já adulto.

As brigas entre Taupin e Elton servem de motor ao filme, que revela os excessos do cantor. Mesmo com os conflitos, Taupin nunca deixou de se preocupar com o amigo, o que dá ao longa uma dimensão comovente de bromance, vitaminada plasticamente pela fotografia de George Richmond.