ASSINE
search button

Filme de máfia de Marco Bellocchio, com cenas no Rio dos anos 1980, gera forte expectativa em Cannes

Na próxima quinta, ele traz à competição "Il Traditore" ("O traidor").

Reprodução -
Il Traditore
Compartilhar

Riviera Francesa – Livro mais badalados entre os lançamentos literários de natureza cinéfila do Festival de Cannes .72, “Une vie de Cinéma” (Gallimard), que reúne escritos esparsos do maior crítico europeu em atividade, Michel Ciment, dedica um capítulo inteiro a um dos pilares do cinema moderno na Itália, na geração que herdou as inquietações sociais do neorrealismo: Marco Bellocchio. Desde sua estreia em longas-metragens, com “De punhos cerrados” (1965), ele é encarado como um ás do debate político e da reflexão sobre a moral. Agora, o nome do aclamado realizador de “Belos sonhos” (2016) tem sido citado aqui por outros mestres - como o espanhol Pedro Almodóvar, que encantou o balneário nesta sexta com o devastador “Dolor y Gloria” -, sendo apontado como um farol para filmografias de diferentes nações. Seu nome anda em alta graças a um projeto novo, que tem o Brasil em seu DNA: na próxima quinta-feira, dia 23 de maio, ele traz à competição pela Palma de Ouro de 2019, seu mais recente exercício autoral: “Il Traditore” (“O traidor”).

Um dos mais esperados concorrentes de Cannes neste ano, em que há 21 candidatos à Palma (“Les Misérables”, do francês de origem maliana Ladj Ly, é o mais badalado até agora), esse trabalho inédito do mítico artesão autoral italiano sintetiza horas e horas de material rodado no Rio de Janeiro. Elas recriam a atmosfera de transformação política da cidade, no início dos anos 1980 (ainda em dias de ditadura), quando o mafioso Tommaso Buscetta (1928-2000) fez o Brasil de lar, no abraço sempre caloroso de sua mulher, a carioca Maria Cristina de Almeida Guimarães. Uma das sequências, rodadas numa clínica em Botafogo, pelo realizador de 79 anos, recria um consultório romano. Nele, acontece uma visita do gângster (vivido pelo ator Pierfrancesco Favino) a um cirurgião que operou seu rosto (papel de Nicola Siri).

Com faixas na cabeça, ainda sob a dor da cirurgia, o criminoso que aderiu à Cosa Nostra aos 17 anos, a fim de driblar a pobreza nas ruas de Palermo, vê ali o que pode ser o seu futuro... a sua redenção... ou a sua queda. Essa é a discussão aberta por “O traidor” (“Il traditore”), que encerrou suas filmagens no Rio no último dia 22, tendo os irmãos Caio e Fabiano Gullane (de “Que horas ela volta?”) como seus produtores brasileiros. E coube uma respeitada atriz nacional, Maria Fernanda Cândido, viver Maria Cristina numa trama que promete fugir de todas as convenções dos filmes de máfia.

“Existe um código de honra que norteia Buschetta e os homens que integraram a Cosa Nostra na época em que ele aderiu à máfia, lá pelo fim dos anos 1940, quando tradição era lei, sem que se matassem padres, mulheres e crianças no jogo do crime. Este filme é um estudo sobre a dimensão moral que cerca uma traição, gesto que depende da palavra, desafiando o que foi escrito, ideologicamente, nessa tal tradição. Sou um cineasta atento ao silêncio, que busca um entendimento da dimensão trágica da quietude, mas que, aqui, encontro uma situação na qual palavra é ação: é trair quem traiu o passado”, explica um sonolento Bellocchio ao JB, num lobby de hotel em Ipanema, em dezembro momentos antes de ir ao set em Botafogo.

Escondido aqui para evitar um derramamento de sangue já que custara a vida de seus filhos, Buscetta foi preso no Rio, acusado de tráfico internacional de drogas e extraditado. Conseguiu fugir da cadeia e retornou ao Brasil, de onde foi expulso pela segunda vez em 1983. Foi então que fez o acordo para delatar centenas de criminosos e expor as conexões da Cosa Nostra com a política italiana. “A traição de Buscetta, ao delatar a Cosa Nostra à Justiça da Itália, é carregada de ambiguidade. Ele não trai por uma conveniência. Ele trai porque, antes dele, com a entrada do tráfico de drogas nas atividades da máfia e uma guerra de sangue, alguém desrespeitou aquilo que antes era sagrado para eles. E o sagrado é, justamente, a palavra. A palavra da honra”, diz Bellocchio, que tem no currículo sucessos de bilheteria como “Diabo no corpo” (1986). “Existe um olhar nos meus filmes de quem viu o fascismo ascender”.

Se havia uma cara de sono na figura grisalha do homem que arrebatou o prêmio de melhor roteiro do Festival de Veneza de 2003 por “Bom dia, noite” e que colecionou elogios, em 2009, na passagem de “Vincere” por Cannes, uma expressão enérgica de vitalidade botou o cansaço para correr assim que as filmagens do dia começa, marcadas por um senso de improviso. Cada dia, ele reinventa uma sequência, pedindo locação nova ou inventando uma situação a ser encarnada por seu elenco, que traz mais dois talentos brasileiros, o de Luciano Quirino (de “9mm São Paulo”) e o de Jonas Bloch (de “Amarelo manga”) à sua trupe, lotada de italianos e iluminada pelo empenho de Maria Fernanda.

“É impressionante o quanto o Bellocchio é aberto ao instante da criação, com uma disposição generosa de ouvir a gente, de absorver nossas ideias. Eu estou vivendo uma mulher culta, de uma família influente no Rio de Janeiro dos anos 1980, que teve a coragem de desafiar as convenções da alta sociedade carioca para ficar do lado do homem que amava, um homem envolvido com o crime”, diz Maria Fernanda, que foi filmar “O traidor” após sair das filmagens de “A paixão segundo GH”, de Luiz Fernando Carvalho. “Às vezes, neste filme, eu me pergunto se a Maria Cristina reavalia as escolhas que tomou em nome desse amor”.

Coube ao fotógrafo Vladan Radovic (de “Loucas de alegria”) registrar as paisagens cariocas no filme, indo a Santa Teresa e à Praia de Abricó. Há cenas ainda m Colônia, na Alemanha, e na geografia italiana. “Há uma instituição que se descaracteriza em nome do dinheiro: com a entrada no tráfico de heroína, algo muda para a Costra Nostra, o que leva Buscetta a repensar seu lugar. E o Brasil vira mais do que uma rota de fuga. Aqui ele forma família, cria raízes, mesmo mudando de rosto, em operações plásticas. Essas mudanças não entram como metáforas na minha percepção desse personagem, pois é o que existe em sua intimidade que mais me interessa. Há ma coerência em seus atos que as palavras não explicam. É o que eu fui buscar entender nas imagens deste filme”, diz Bellocchio, ao explicar que Buscetta fugiu para o Brasil pela primeira vez nos anos 70, em meio a uma disputa por poder na máfia siciliana, sendo capturado aqui pelo regime militar vigente. “Não sei se consigo fazer uma analogia entre a situação do Brasil da ditadura e a situação política que vocês vivem hoje, em meio a uma discussão sobre repressão. O que posso dizer é que, no período em que Tommaso foi detido, havia uma preocupação do governo militar de que a presença de um mafioso internacional não atrapalhasse o Poder vigente de forma alguma”.

Para evitar que a representação do Brasil pudesse incorrer em algum vexatório deslize histórico, Bellocchio trouxe para o filme o cineasta paulista André Ristum, ganhador do Kikito de melhor direção em Gramado, este ano, por “A voz do silêncio”. Ristum viveu na Itália e foi assistente de Bernardo Bertolucci (1941-2018) em “Beleza roubada” (1996). Ele entra em “O traidor” como produtor delegado, ajudando Bellocchio na harmonia com a realidade nacional. “Marco tem uma forma mais artesanal de filmar. Pra ele, uma locação revela quem um personagem é. Ele não escolhe uma locação apenas pela beleza: ela precisa significar algo que o personagem é. Isso fez com que eu me reconectasse como desejo de juventude que me levou a ser diretor”, diz Ristum, que trabalha em sintonia com os Gullane, na produção, para oferecer a Bellocchio o melhor do nosso cinema, na finalização desta produção estimada em €7,5 milhões.

Elétrico e enérgico em suas palavras de ordem (“Tem muita gente neste set. Saia quem não for indispensável à cena, por favor, agora!”, ordenava, com firmeza, mas nunca deselegante), Bellocchio se vê diante de seu trabalho mais ambicioso em cinco décadas de carreira. “Não é o mafioso que me interessa. É o sujeito por trás dos crimes”, diz Bellocchio. “Quero que ‘O traidor’ seja um filme sobre escolhas”.

Cannes termina no dia 25, com a entrega de prêmios e a projeção de “Hors norme”, da Olivier Nakache e Éric Toledano, dupla responsável pelo fenômeno “Intocáveis” (2011). O Brasil fez bonito aqui, na quarta-feira, com “Bacurau”, que pode render ao duo pernambucano Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, um prêmio de direção.

Tags:

Canc?n | filme | máfia