Embora empunhe um escudo como seu instrumento de combate, o Capitão América ao qual fomos apresentados pelo Marvel Studios usa uma dália como insígnia de suas emoções: um cordão no qual carrega a foto de sua amada Peggy Carter (Hayley Atwell). É aquela guia que abre seus caminhos, é o fio de contas de sua devoção no Humano, lapidada na forma nem sempre apolínea da palavra “amiga” na figura de Tony Stark. Essa dália de saudades se abre mais de uma vez no monumental “Vingadores: Ultimato”, um díptico do longa-metragem “Guerra Infinita”, de 2018, que arrecadou dois US$ 2 bilhões nas bilheterias. Espera-se mais do novo título de uma série que ganhou título próprio em 2012, mas que se integra a uma linha de superproduções, divididas em fases, iniciada em 2008, quando o estúdio, que hoje pertence à Disney, começou suas atividades. Como nos anteriores, o filmes atual é lotado de sequências de ação, regado a litros de adrenalina e potencializado pela aguerrida figura do Ronin, uma identidade secreta assumida pelo Gavião Arqueiro, interpretado por Jeremy Renner, em seus momentos de tempestade. É ele quem abre o filme, acompanhando sua família virar poeira, graças aos feitos do vilão Thanos (Josh Brolin, em uma recriação por efeitos de computer generated imagery, oi CGI). É uma continuação direta do longa que lotou cinemas no ano passado. O Arqueiro tem momentos arrebatadores aqui, como um duelo de esgrima lá pelo meio deste torpedo em forma de filme. Mas o que mais interessa é o retrato que o Capitão, esplendidamente interpretado por Chris Evans carrega com ele e o solilóquio de Stark, com todo o talento de Robert Downey Jr. É um filme de filosofias, dilemas existenciais, que troca o estrategismo e o fundamentalismo de “Infinite Wars” por preocupações com o espírito humano. Daí voltar no tempo: é nietzschiano.
Há um ano, “Vingadores – Guerra Infinita” pintava um quadro de Poder, dando espaço a um diálogo memorável. Uma fala na qual Thanos encara o Homem de Ferro e chama o terráqueo pelo nome, “Tony Stark”, com uma expressão interrogativa, num “de onde você me conhece?” assustador para ele e para a plateia. Construído por Brolin com tônus trágico, num esquema de motion capture (técnica na qual os movimentos de um ator são registrados num software que redefine estes gestos a partir de efeitos digitais que descaracterizam seu visual), Thanos vira para o herói e diz: “Você não é o único que foi amaldiçoado com o conhecimento”.
Thanos sabe muito, pois há eras ele estuda o que de pior as civilizações têm: a vaidade. É dela que vem a decadência. E o papel que atribuiu a si mesmo no Universo é varrer da História povos decadentes. Muita gente... Nos quadrinhos de Jim Starlin, Thanos fazia isso por amor: ele se apaixonou pela Morte em pessoa, de osso, foice e capuz. Matava para poder cortejar sua amante. No longa-metragem em duas partes dirigido pelos irmãos Joe e Anthony Russo, a Indesejada das Gentes não é citada: Thanos destrói planetas por ideologia. Ele é a encarnação – talvez a mais sombria tradução da vilania que o cinema de tintas fantásticas elaborou desde Darth Vader – do fundamentalismo – inimigo número um do mundo quando o assunto é terror... terror real. Thanos é a metáfora da América de Trump: remover o que incomoda, sem pesar as consequências. A diferença agora, em “Ultimato”, é que ele acredita ter cumprido sua missão. E empenha suas horas vagas na caça por paz. Isso até um plano de revanche, tendo o Capitão América à frente da ação, debelar seu reinado de placidez.
Ao assumir como personagem central (confiado a um ator em estado de graça como Brolin) a figura de um terrorista que não faz exigências, a Marvel, no filmaço de 2018, deixava evidente sua reta de maturidade em busca de trama menos calcadas em onomatopeias (Soc! Pow! Pum!) e mais interessadas em verticalizar conflitos existenciais e políticos. Seu reinado no cinema começou, silencioso, há 20 anos, quando Wesley Snipes juntou tostões para filmar “Blade – O Caçador de Vampiros”, de 1998. Ali pavimentou-se o caminho para a fauna de mascarados de Stan Lee ganhar corpo e alma no cinema. Mas, desde o seminal “Logan” (2017), a Casa das Ideias (apelido da Marvel) abriu a deixa para discutir temas mais cortantes do que o maniqueísmo. “Pantera Negra”, com sua veia racial festiva, foi o ápice da transformação do estúdio na trilha do amadurecimento.
Em “Guerra Infinita”, já em exibição na TV, nem todos os efeitos especiais do filme tinham o acabamento necessário e, passados 55 minutos, quando os heróis começam a se dividir em grupos, a edição sofre uma ralentada, o que dilui o ritmo, exigindo do roteiro uma aposta em piadas que funcionaavm melhor com os Guardiões da Galáxia (sobretudo com Chris Pratt, o Senhor das Estrelas) do que com os Vingadores. O herói que mais perde aqui é o Homem-Aranha, pois Tom Holland, seu talentoso intérprete, parece não encontrar aqui a mesma alquimia entre carisma e tônus dramático de suas aparições em outros filmes. Mas nada disso tira de “Guerra Infinita” seu viço como épico sobre o fervor. Aqui, em “Ultimato”, defeitos de antes são sanados. O mergulho na inquietação é mais pleno.
É impossível encarar a sequência em que Tony Stark (Robert Downey Jr., em estado de graça) desabafa sua sensação de fracasso para a máscara sucateada do Homem de Ferro sem pensar em Hamlet e sua conversa com o crânio de Yorick: é ali, já no começo, carregado de energias shakespearianas, que Os Vingadores: Ultimato deixa evidente sua dimensão existencialista. É um longa-metragem primoroso em termos técnicos e dramatúrgicos, com um desfecho capaz de levar o público (marvete ou não) às lágrimas, mas que vai muito além da cartilha do comic book, vitaminado por uma trilha sonora de diversas tonalidades e por uma sequência mais do que antenada com os pleitos da contemporaneidade, na qual as mulheres heroínas ganham uma apoteose. E há um Mark Ruffalo rindo de si mesmo, mas com respeito, na pele verde do Professor Hulk. Melhor que ele só o transbordamento da atuação de Chris Hemsworth como Thor, mais bufão.
Há muito humor em “Ultimato”, porém, o que mais interessa é o miolo filosófico deste blockbuster. Há algo de podre no reino da Marvel, representado na figura de um titã quebra-mundos que faz do extermínio uma forma de encarar a paz. Thanos é um Macbeth, que sujou suas mãos de pó de pessoas atomizadas, movido por sua milady, a Morte, e, agora, coroado soberano do vazio, reflete sobre o horror de seus atos buscando equilíbrio interno. O longa-metragem anterior da franquia, o magnífico “Guerra infinita”, era dele... era seu “Trono manchado de sangue”, bem parecido com o de Akira Kurosawa. Mas neste novo e (por enquanto) derradeiro tomo de uma saga que redefiniu a história do entretenimento nas telonas, de 2008 para cá, percebe-se, já nos primeiros minutos, que o buraco é mais fundo, é o da náusea diante do ser ou não ser herói em um mundo que perdeu o leme. Por isso, só um vigilante demasiadamente humano como Stark – um ególatra alcoólatra, incapaz de relativizar suas noções de Bem e Mal – pode ser o Príncipe da Dinamarca nesta tragédia anunciada sobre a reconquista da esperança.
Exultando fragilidade, no silêncio ou no falatório, Stark é o cordeiro do deus Stan Lee (1922-2018): a imolação de sua arrogância é o dízimo a ser pago em prol da crença do altruísmo como argamassa de uma civilização de tolerância. Thor, numa interpretação memorável de Chris Hemsworth, será o bobo da corte deste espetáculo de som e de fúria, fazendo o público rir para assinalar a medida do desespero de um gladiador sem arena. Thanos destruiu o Coliseu com seu estrategismo niilista: não existe mais batalha a ser lutada, no início deste inventário de cicatrizes dirigido na raia da excelência épica pelos irmãos Joe e Anthony Russo, porque não existem mais guerreiros. O Darth Vader das HQs apagou um punhado significativo de almas da Terra... e de todo o Universo... a fim de higienizar o Cosmos das pragas afetivas, das prepotências. Cabe ao Hefeso dos quadrinhos, Stark, o forjador, dar um sentido à falta de propósito ético que se instaurou em sua realidade com o desmantelo das diferenças e das imperfeições.
Cabe a Stark forjar o caos. Daí a matéria do tocante “Avengers: Endgame” ser o Tempo. É na confluência do vetor intangível... a perenidade do existir... que o irretorcedível se torna reversível. O filme dos Russo não é uma trama de vingança. É a odisseia temporal de uma gente que perdeu o senso de sua relevância para bagunçar uma pintura com as tintas mórbidas da plenitude e da quietude, enchendo o quadro de humanidades. Stark é o retocador. Cabe ao Capitão América, num desempenho surpreendente de Chris Evans, ser o seu arte-finalista: preenchendo lacunas e completando pontilhados. São amigos de vida. E é a amizade que serve de leme a uma narrativa que fecha um ciclo histórico de sucesso na Estética do audiovisual, aberto com “Homem de Ferro” (2008), de Jon Favreau, no qual Downey Jr. fez sua carreira reencontrar os trilhos.
Os Russo, agora, passam em revista cada um dos filmes que compõem a rede de tramas da Marvel nos cinemas, levando o espectador por um turbilhão de nostalgia, ao mesmo tempo em que entra em sintonia fina com o pleito pelo empoderamento feminino, a partir da Capitã Marvel de Brie Larson, com uma heroína que regressa aqui ainda mais gloriosa. Agora, com o novo “Os Vingadores”, temos um réquiem – sem cenas ao fim dos créditos – para um projeto de epicização fantástica das relações afetivas. Thanos, na inteligente composição de Brolin, deixa de ser o Prometeu acorrentado do longa de 2018 e é repaginado como besta fera. Sua maldade assegura a verve espetaculosa de que o filme precisa para agradar os fãs e deixar o Homem de Ferro nos guiar pelos erros da condição humana. Filme de uma beleza singular, que faz jus a cada milhão investido.
E as imagens finais, apoiadas num debate sobre o romantismo, são de amolecer o peito.