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O querubim da opressão militar

COTAÇÃO: * * * (Bom)

Divulgação -
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Produzido pelos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar, pela espanhola grife El Deseo, “El Ángel” foi a maior ofensiva da Argentina no Festival de Cannes 2019, onde tentou sua sorte na mostra Un Certain Regard, paralela à briga pela Palma de Ouro, apoiado numa narrativa com ecos de “Cidade de Deus” (2002) em sua reconstituição histórica dos anos 1970, pelas vias da violência na periferia de uma metrópole sul-americana. Há uma parentela estética ainda com “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” (1977), de Hector Babenco (1946-2016), na viagem no tempo empreendida pelo diretor Luis Ortega (“Monobloc” e “Caja Negra”) para estudar, decifrar e entender os fetiches de uma juventude criada à sombra da ditadura. Seu estudo se processa a partir dos feitos de Carlos Eduardo Robledo Puch, que, entre 1971 e 72, ainda na adolescência, acumulou dezenas de roubos e um punhado de assassinatos, em nome do prazer, e não da necessidade. O Anjo da Morte era seu nome. Nas telas, Lorenzo Ferro, seu intérprete, ganhou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Havana por seu desempenho cheio de ambiguidades, o que tinge de tons noir este thriller de cargas políticas sobre sequelas morais da repressão: em sua direção, Ortega levanta a hipótese de que um matador daquele grau de perversão é fruto da muralha moralista erguida pelos militares no Poder.

Em Cannes, o diretor afirmou que “esse novo cinema, combativo, mas calcado em formatos de gêneros como o policial, que temos feito, na Argentina, é uma reação à comodidade, à apatia moral dos novos tempos”. Ortega oxigena as cartilhas do noir ao explorar a psiquê de Carlito Puch, o Anjo, investigando suas inquietações familiares (na relação com uma mãe protetora, vivida por Cecilia Roth, e um pai moderado, encarnado pelo ótimo Luis Gnecco) e em suas indagações acerca da própria sexualidade. Puch, na telona, tem uma paixão indisfarçável por um jovem que o arrasta crime adentro. Algumas vezes, o filme chega a supor que roubar e matar é sua forma de atrair a aprovação (e a libido) do colega de armas. Mas, aos poucos, fica claro que há uma questão de satisfação pessoal, de autoestima.

Mas esse estudo psicanalítico - que perde a força pela recorrente necessidade de Ortega em afirmar a beleza angelical de Puch e seu efeito sobre seus contemporâneos – divide espaço com uma linha de crônica de época, na observação dos costumes de uma Argentina em tempo de Jovem Guarda. A escolha da canção “El Extraño del Pelo Largo” é um estandarte de uma cultura pop hispânica que surgiu como reação roqueira ao jugo ditatorial naquele país, que tem em Puch um signo de sua bandidagem – e de suas pústulas governamentais.

Macaque in the trees
(Foto: Divulgação)

Tags:

cinema | crítica | filme