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Papo cabeça, na língua do coração

COTAÇÃO: * * * * (Muito Bom)

Divulgação -
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Herdeiro de uma tradição verborrágica cuja incontinência verbal é sinônima de poesia, em sua expressão para dilemas nossos de todo dia, como se via em Éric Rohmer (1920-2010) e seu “O raio verde” (1985), “Vidas duplas” exige de seu fotógrafo, Yorick Le Saux (de “Potiche – Esposa troféu”), um colorido esmaecido, sem berros, numa luz de poucas gradações. O mundo onde seus personagens interagem acredita ter plena lucidez acerca de suas decisões, elegendo as impressões como sensos absolutos – daí a falta de impasses na forma. O impasse está lá no fundo do coração de representantes do mundo das Artes que o cineasta Olivier Assayas (de “Clean”), hoje no auge de sua potência dramatúrgica, escolheu investigar. Há uma atriz em crise por suas escolhas profissionais, Selena (Juliette Binoche, mais elegante em sua forma de triturar signos e significados em suas falas do que o habitual). Há o marido dela, um editor de livros que esbanja carisma e apelo sexual, Alain (Guillaume Canet, inspiradíssimo em suas ambiguidades), mas que padece de angústias acerca do mundo digital. A câmera de Assayas, num enquadramento conjugado com a linha de iluminação pensada por Le Saux, passa por essas duas pessoas sem frisar suas pontuais excentricidades. Na Comédia Humana do diretor de “Depois de maio” (2012), as loucuras deles não são diferentes das nossas: eles desejam (por vezes em demasia), equivocam-se, lutam para consertar as bobagens, mas, sobretudo, tentam. Gente como a gente. A especificidade deles, neste bem-humorado roteiro, intitulado “Doubles vies” em Francês e “Non-Fiction” em Inglês, é o interesse de seu realizador em estudar a rotina de Alain e de Selena em paralela com as transformações midiáticas da comunicação, a partir de uma lupa que passa por Marshall McLuhan (1911-1980), o guru dos media, e pelo Woody Allen de “Annie Hall – Noivo neurótico, noiva nervosa” (1977).

Sensação do último Festival do Rio e um dos títulos mais elogiados da seleção de Veneza, em 2018, na disputa pelo Leão de Ouro, “Vidas duplas” deixa sua problemática explícita em um diálogo no qual Selena demonstra sua inquietude ao afirmar que foi convidada para uma nova série de TV. O Teatro e o Cinema, objetos de sua querência, ficaram em segundo plano em nome das praticidades da subsistência. Já Alain se debate em relação ao planisfério da edição virtual, diretamente para a web, sem papel. Os dois são seres analógicos. Pequena é a intimidade deles com as novas regras de um mundo sem lastro físico, onde até o carinho se torna volátil. Hoje ocupado com “Wasp network”, thriller com Penélope Cruz, Wagner Moura, Pedro Pascal e Edgar Ramirez e Gael García Bernal baseado no livro “Os últimos soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais, Assayas construiu esta comédia de costumes a fim de abrir uma discussão sobre a fronteira entre a desaparição e a transformação. Há hábitos que mudam, ou até evoluem. E há hábitos que desaparecem. O quanto, dessa tênue fronteira, pode afetar a memória e, pior, as relações?

É uma dúvida existencial, que coloca o processo comunicacional em xeque, sem condenações e sem adulações. É apenas dialético – tudo o que se espera de um artista com a maturidade que Assayas alcançou.

Macaque in the trees
(Foto: Divulgação)