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Os atalhos de Santiago

Divulgação -
Imagem da tela "Transfiguração"
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O escritor Silviano Santiago reuniu no romance “Machado” (Companhia das Letras, 2017) os seus múltiplos talentos literários. A obra traz uma rica pesquisa biográfica de Machado de Assis (1839-1908) e sua época, mas não pretende ser uma biografia do protagonista ou um romance histórico, e recorre com frequência à linguagem ensaística.

As suas pesquisas baseiam-se em várias fontes, como os jornais da época, manuais de medicina, obras de arte, monumentos de arquitetura e urbanismo que resistiram às intempéries; além dos registros históricos daqueles que não resistiram às inovações do período de transformação do Rio de Janeiro “numa cidade ordenada e civilizada, segundo os padrões projetados pelo barão de Haussmann para Paris”.

Macaque in the trees
Silviano Santiago (Foto: Divulgação)

É nesse cenário que surge Machado de Assis para assumir o papel de mímico “no palco da escrita”. A sua imagem como “mímico” das letras é recorrente no romance. Este comove pelo humanismo que desborda do protagonista, pela sua entrega ao ofício de escritor, capaz das mais inventivas criações até o final dos seus dias, e a luta contra uma doença que lhe causou imenso sofrimento.

Machado: o ofício de escritor e a doença

O autor faz uma associação entre a doença e a criação artística, detendo-se nas crises frequentes de Machado de Assis ao final da vida. A sua investigação recobre os derradeiros anos do protagonista – 1904 a 1908.

É particularmente fecunda a pesquisa que o autor realizou a partir das correspondências entre Machado de Assis e Mario de Alencar (1872-1925), advogado, jornalista e poeta, filho do escritor José de Alencar. Ele também pertenceu à Academia Brasileira de Letras, influenciado por seu “pai espiritual”, Machado. A disputa com o escritor Domingos Olímpio (1851-1906) para a sucessão de José do Patrocínio na ABL rendeu muitas críticas à época, conforme descreve Silviano.

Como o tempo é inexorável, o narrador observa que não seria possível recomendar ao escritor, “a hoje popular e indispensável terapia”. Nesse trecho, e em vários outros, não se furta a avaliar as suas fragilidades literárias e psicológicas.

Mario de Alencar é um personagem muito presente neste romance. Ele era amigo e manteve extensa correspondência com Machado. Ao lado deste, torna-se uma figura menor, mas qualquer autor brasileiro tornar-se-ia pequeno em termos literários, se comparado ao gênio machadiano.

Macaque in the trees
Imagem da tela "Transfiguração" (Foto: Divulgação)

Ambos sofriam do mesmo mal – a epilepsia e trocavam informações sobre os sintomas, as crises e as formas de tratamento da doença. Machado sofreu bastante com essa doença, para a qual não havia cura e era estigmatizada, dificultando a sua convivência social. Comentava-se sobre os seus problemas de saúde e há registros de desmaios do escritor em eventos públicos.

No contexto da literatura universal, Machado de Assis e o escritor francês Gustave Flaubert compartilhavam um imenso talento literário, além das aflições físicas e psicológicas por conta dessa mesma doença. Conforme Silviano, “o mercúrio das crises epilépticas” faz com que o “termômetro estético” dos dois escritores alcance as temperaturas mais elevadas das emoções humanas.

Machado era acompanhado de perto pelo dr. Miguel Couto, clínico de renome à época, mas para o seu mal não havia perspectivas de cura, e o tratamento não ia além de algumas recomendações de alimentos, chás, banhos e xaropes, como o de Bromureto de Potássio. O uso prolongado deste xarope terminou por lhe provocar sérios problemas de estômago ao fim da vida.

Macaque in the trees
Capa do romance (Foto: Divulgação)

O narrador e seus atalhos

Silviano Santiago proporcionou ao seu narrador a liberdade necessária para que ele transitasse entre gêneros e criasse essa obra fronteiriça. Até mesmo o autor real se transforma em “companheiro de viagem” de Machado de Assis. Conforme as lições elementares do fazer literário, autor e narrador estão sujeitos às intermediações de praxe, sendo que aqui o autor cria um atalho a fim de encontrar o outro, objeto da sua admiração.

E se tudo é liberdade na criação de um romance por que não conceder esse pequeno ato de soberania a seu autor? Afinal, o romance é um gênero em que cabe quase tudo em termos de invenção, e talvez por isso tenha sobrevivido aos decretos da sua morte através dos anos e dos séculos.

No ensaio “O narrador pós-moderno” (2002), Silviano Santiago faz a seguinte pergunta: “Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu narro e conheço por ter observado?” No romance “Machado”, ele discorre sobre as percepções do cotidiano na passagem dos séculos 19 para o 20, e de posse de uma extensa pesquisa dos passos reais e imaginários do Bruxo do Cosme Velho, realiza a sua criação. O narrador ultrapassa as fronteiras do tempo: “Bato, finalmente, à porta do chalé do Cosme Velho. Atende-me Machado de Assis.”

Vale observar que a forma narrativa deste romance sobre Machado tem como precedente uma outra obra do autor – a ficção “Em liberdade” (1981), onde Santiago cria um diário de Graciliano Ramos recém-saído da prisão. A ação se passa no Rio de Janeiro, em 1937, logo após a libertação do romancista de “Vidas Secas” pelo governo autoritário de Getúlio Vargas.

O último capítulo do livro leva o título de “Transfiguração”, fala sobre a admiração de Machado de Assis pelo escritor francês Stendhal, coloca a figura do abolicionista Joaquim Nabuco em cena, e comenta a tela de Rafael (1483-1520) que leva este mesmo título. A obra-prima da pintura renascentista retrata, na parte superior, a cena bíblica da transfiguração de Cristo diante dos apóstolos. Na parte inferior vê-se outras imagens que representam várias figuras humanas. O autor descreveu o interesse de Stendhal por esta tela, fazendo chegar às mãos de Machado uma cópia da mesma. Já Nabuco, que contemplou a obra original, não guardou boa impressão da mesma.

Silviano Santiago foi contemplado com o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua produção literária. E recebeu o prêmio Oceanos, pelo romance “Mil rosas roubadas”, onde aborda a questão da homoafetividade. Ele já havia posto em cena o universo trans no romance “Stella Manhattan”, nos anos 1980.

O escritor nasceu em Formiga, Minas Gerais, em 1936. Além da intensa produção literária, Santiago foi professor de literatura da PUC-RJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Principais obras de Silviano Santiago

Machado. Companhia das Letras, 2017

Mil rosas roubadas, Companhia das Letras, 2014

Genealogia da ferocidade: ensaio sobre Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Cepe, 2017

Uma literatura nos trópicos (1978). Cepe, 2019

Nas malhas da letra. Rocco, 2002

Viagem ao México. Rocco, 1995

Stella Manhattan. Nova Fronteira,1985

Em liberdade. Paz e Terra, 1981

*Marcio Salgado é jornalista e escritor, autor do romance “O filósofo do deserto”

Divulgação - Silviano Santiago
Divulgação - Capa do romance