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Até que a morte as una

Reencontros de mulheres em funerais de uma mãe e de uma avó marcam, respectivamente, as peças 'Pandora', em sua quarta temporada, e 'Felizes mortos, já em cartaz

Chico Cerchiaro/Divulgação -
As irmãs Janaína (Jaqueline Roversi) e Joana (Jordana Korich) abre o baú da família que remete à Caixa de Pandora
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De maneira simultânea, coincidente, duas peças passam este mês em palcos do Rio com narrativas que partem de um argumento semelhante: duas mulheres que se conhecem desde crianças e se afastam. Depois de anos, elas se reencontram em funerais de outras mulheres, de gerações anteriores. No caso de "Felizes mortos", que entrou em cartaz na semana passada, são amigas de infância que retomam contato no enterro da avó de uma delas. Em "Pandora", existe ainda a relação familiar, com duas irmãs se reunindo no velório da mãe. A peça que estreia hoje a quarta temporada carioca, na Casa de Cultura Laura Alvim, tem o título retirado dos segredos guardados por uma das irmãs, no texto assinado pelas duas atrizes que a encenam, além de produzirem o espetáculo. Uma das irmãs, Janaína (Jaqueline Roversi), jamais saiu da casa da família na serra, mantém um ateliê de artes e segue a profissão da mãe, contadora de histórias, além de estudar mitos e culturas ancestrais - elementos que também basearam o argumento da trama, como ressalta a diretora Leona Cavalli. "Cada mito feminino é contado em cada linguagem".

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As irmãs Janaína (Jaqueline Roversi) e Joana (Jordana Korich) abre o baú da família que remete à Caixa de Pandora (Foto: Chico Cerchiaro/Divulgação)

Ponto em comum entre as irmãs, reunindo-as em torno das lembranças da infância, o hábito de contar histórias é levado à cena em três contos das culturas grega, hebraica e hindu - "Deméter e Perséfone", "Sophia e a criação" e "Ganesha e Kartikeia", respectivamente -, além das icamiabas, conhecidas como "amazonas brasileiras", que, de acordo com relatos do frade dominicano Gaspar de Carvajal (1504-1584), lutaram contra os espanhóis no século XVI, na Amazônia.

Param por aí, entretanto, os pontos em comum entre Janaína e Joana (Jordana Korich), que saiu de casa para estudar na capital e se formou engenheira. E começam as tensões.

Com uma visão mais prática da vida, valorizando a realização financeira, mas recém-dispensada de um projeto que ela mesma desenvolvera, Joana não aceita que a irmã tenha se apossado da casa da família, única herança deixada pela mãe. Por sua vez, Janaína reclama de ter cuidado sozinha da mãe doente até o fim da vida.

A polaridade entre as duas irmãs se revela em tensões, inclusive depois que Janaína decide mostrar, pela primeira vez, a Joana um baú onde estão guardados memórias e lembranças delas duas, da mãe e dos antepassados - momento em que a história delas próprias se relaciona com a das lendas.

No palco, as histórias são contadas com o auxílio de bonecos construídos por Bruno Dante ("Gritos", "Makuru, um musical de ninar", "Pega Pega", entre outros) ajudam a contar as histórias, além de máscaras criadas por Marise Nogueira. A luz é Aurélio de Simoni e a trilha sonora de Alessandro Persan.

Remetendo à Caixa de Pandora, o título da peça se refere à abertura do recipiente que guardava os males do mundo, na mitologia grega. "A escolha se deu, primeiro, porque a Pandora significa os mistérios femininos que elas abordam. Um mito de abertura, que revela luz e sombra e a verdade de cada ancestral da mãe terra.

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Leona Cavalli dirige sua terceira peça, para além de seu extenso trabalho como atriz em teatro, cinema e televisão (Foto: Reprodução)

Depois, também porque são irmãs com personalidades completamente diferentes, "que vão dividir a herança e acabam revivendo lembranças, quando abrem o baú", explica Leona, que foi convidada pela dupla de atrizes/produtoras para a direção.

"Dirigir já é uma coisa que não é nova, mas é diferente, uma vez que mergulho com mais frequência no trabalho como atriz. Então, aceitar foi uma coisa que me desafiou, inclusive pelo próprio processo de direção, com base nos mitos, em cujo estudo mergulhamos profundamente", conclui a diretora.

Às cores, para a eternidade

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Pintar o túmulo da mãe foi a forma que a roteirista Denise Portes encontrou para sublimar a dor da perda em uma homenagem a ela, artista plástica, imersa no trabalhos com cores. Acabou sendo também o ponto de partida para a peça em cartaz no Reduto, em Botafogo, encenada por sua filha, Júlia Portes, com Joana Kannenberg.

No palco, elas vivem respectivamente Francini e Marta, que se tornaram amigas próximas na infância, em um cidade pequena. Também entraram juntas na adolescência, partilhando suas descobertas, mas, no entanto, se afastaram na idade adulta e só se voltam a se ver em um funeral. Era o enterro da avó de Francini, que havia se mudado para a metrópole, em busca de trabalho, de uma nova vida.

O reencontro acaba marcado por confrontos éticos e morais, expectativas e ressentimentos entre as duas antigas amigas.

Em comum, têm uma missão: pintar em múltiplas cores o túmulo da recém-falecida, da mesma forma do que foi feito com a avó de Júlia Portes. "Na nossa sociedade, a morte está relacionada ao luto, ao choro e à tristeza. Tanto na peça quanto na vida real, a ideia é romper e celebrar com alegria a passagem de uma pessoa muito querida e tudo o que ela nos deixou", compara a atriz. "Por que uma mulher tão criativa como a minha avó ficaria enterrada num lugar todo cinza?", questiona no texto de apresentação da peça.

Na vida, a diferença é o intermédio geracional. Foi Denise, mãe dela e avó da artista Carmelita, quem pintou seu túmulo, em 2016. Posteriormente, a experiência pessoal inspirou o texto teatral, escrito a oito mãos por Denise, Júlia, Joana e o diretor Lucas Lacerda.

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Lucas Lacerda dirige 'Felizes mortos', baseada na experiência da roteirista Denise Portes (Foto: Reprodução/YouTube)

"A ideia do texto veio com um desejo da Denise Portes, porque queria subverter um pouco a vontade de azulejar ou perpetuar a cor cinza, essa falta de cor. Já tinha a dor que a morte traz e é difícil para qualquer pessoa e resolveu pintar a sepultura, 'porque minha mãe era uma artista', como ela dizia", ressalta o diretor, ao JORNAL DO BRASIL, lembrando que a roteirista planejou, desde a pintura do jazigo, o processo criativo que culminou no espetáculo cênico.

"A Denise juntou a equipe para fazer um clipe como registro da pintura e levou essa experiência durante o processo de montagem, com a filha dela. Através dos brainstorms artísticos para construção da obra teatral, acabamos fazendo o texto e a forma com que elas se apresentam no palco", acrescenta, qualificando a narrativa como uma "história atravessada performaticamente por um diálogo entre a ficção e a realidade".

A peça também aborda relações familiares e laços sanguíneos, incluindo seus conflitos, de polarizações ideológicas a choques de temperamento, além de influências que afetam encontros, escolhas e comportamentos. "Muitos assuntos nos atravessam. Eu mesma vim do interior do Rio Grande do Sul e deixei minha família. Sempre existe um questionamento atrás do que eu vim fazer. Quando as coisas ganham ou perdem sentido", avalia, na apresentação do espetáculo Joana Kannenberg, que atua pintada em cores, assim como a colega.

Fugindo do realismo, o figurino de Nathalia Gastim e o cenário de José Dias remetem a elementos da peça e aos novos significados que se somam ao longo da trama, realçada pela iluminação de Gabriel Prieto. Composta por Natália Oliveira, a trilha sonora original representa as passagens de tempo das personagens.

 

Priscila Jammal/Divulgação - Júlia Portes e Joana Kannenberg vivem Marta e Francini, amigas de infância que se reencontram no velório da avó da segunda
Reprodução - Leona Cavalli dirige sua terceira peça, para além de seu extenso trabalho como atriz em teatro, cinema e televisão
Reprodução/YouTube - Lucas Lacerda dirige 'Felizes mortos', baseada na experiência da roteirista Denise Portes