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Cartas de fel

Livro mostra afinidades e divergências, amizade e ressentimento na correspondência completa e inédita entre Mário de Andrade e o crítico Alceu Amoroso Lima

Divulgação -
Apontamento do crítico Alceu sobre "A escrava que não é Isaura"
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"Meu caro Tristão

Tenho uma carta sua, de março, e se não lhe respondi até agora, foi na indecisão mais desagradável que é possível imaginar. Tenho estado bem doente e doença que proíbe trabalho intelectual excessivo. Porém sua carta é importante demais pra mim" (...)

"Tem um motivo principal esta resposta, aliás. É me penitenciar duma frase que perdeu a sentido! Me faltou a tempo uma criada leitora que me chamasse a atenção pro caso. É quando afirmei que V., seguindo a tradição da crítica nacional, sofria de incompreensão de poesia" (...)

"Mas eu estava dizendo que se nunca atingi o comunismo decerto foi por medo de mim. Eu queria continuar dizendo que se não atingi o catolicismo decerto foi por medo de mim, também."

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Nascido no mesmo ano que Alceu, Mário morreria bem mais cedo, vítima de ataque cardíaco (Foto: Reprodução)

Datada de 17 de junho de 1943, a amargurada carta traz um Mário de Andrade (1893-1945) já sofrendo de depressão e de problemas do fígado e de tosse - prováveis decorrências de alcoolismo e tabagismo. Com toda a sua carga, ela resume a reta final das correspondências que manteve por quase 20 anos com o crítico literário, e também escritor, Alceu Amoroso Lima (1893-1983), a quem chama pelo primeiro nome de seu pseudônimo Tristão de Athayde.

As tensões da amizade e respeito intelectual ante as divergências artísticas e, especialmente, políticas, além do desespero por não alcançar alguma fé, agravado pelos efeitos de doenças, trazem um exemplo prático da convivência direta entre pessoas que compunham o meio erudito nacional nos conturbados meados do século 20, inclusive com ideias e antagonismos ainda presentes atualmente.

As cartas entre esses dois personagens de ponta da vida intelectual brasileira da época são abordadas e analisadas nas 328 páginas de "Correspondência - Mário de Andrade e Alceu Amoroso Lima" (Edusp), lançado no final de 2018 por Leandro Garcia, professor de teoria literária da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), um especialista em Amoroso Lima - em especial, de sua obra epistolar -, que já estudou trocas de cartas de Alceu com autores que vão de Murilo Mendes a Leonardo Boff, passando por Jorge de Lima e Paulo Francis.

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O crítico literário Alceu Amoroso Lima, principal objeto de estudo do autor de "Correspondências" (Foto: Reprodução)

Alguns desses estudam também já viraram livros, como "Cartas de esperança em tempos de ditadura" (Editora Vozes), de cartas que o crítico trocava com Frei Betto, e "Correspondência de Carlos Drummond de Andrade & Alceu Amoroso Lima" (Ed. UFMG), de sua interlocução com Carlos Drummond de Andrade e quase homônimo ao que ele lança agora.

Entre buscas por crenças, as divergências políticas são diretamente ligadas às religiosas, deixando como curiosidade a posterior conversão de Amoroso Lima ao campo político da esquerda, "tendo sido um dos fundadores do PT, juntamente a Sérgio Buarque de Hollanda e Antônio Cândido", como lembra o autor, afirmando que, quatro décadas antes, Andrade "nunca defendeu abertamente" o comunismo, mas era "simpático à ideia".

Temperamentos opostos, aspirações e opiniões que ora convergiam, ora se chocavam, em fatores sempre impulsionados pelo interesse comum na evolução da arte - particularmente, da literatura.

Todas esses encontros e embates intelectuais, carregados acabaram ajudando a contar parte da história entre 1925 e 1944, período em que Andrade e Amoroso trocaram cartas, o que só acabou exatamente com a morte do escritor, em 25 de fevereiro de 1945, vítima de ataque cardíaco. 

‘Mário matou a Igreja, mas não conseguiu matar Deus’

Entre questões religiosas, políticas e comportamentais, o professor de teoria literária explicou parte da influência e da importância das trocas de cartas entre Mário de Andrade e Alceu Amoroso Lima, ressaltando ideias convergentes e divergentes do autor de “Pauliceia Desvairada” (1922), “Macunaíma” (1928) e “O pensamento modernista” (1942) com o de “Elementos de ação católica” (1938), que, por décadas, também foi colunista do JORNAL DO BRASIL.

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Garcia diz que a troca de ideias entre Alceu e Mário foi mudando ao longo dos anos (Foto: Reprodução)

JORNAL DO BRASIL - Quais são os principais pontos de convergência entre Alceu e Mário marcados na correspondência e na amizade entre eles?

LEANDRO GARCIA - O interesse pela literatura e pela crítica literária e de ideias em geral; a certeza de que a literatura brasileira precisava mudar, evoluir, tornar-se moderno, dialogando com as evoluções literárias que vinham da Europa, pensar um “projeto cultural de Brasil” e a grande amizade e respeito mútuos que um sentia pelo outro, pois mesmo divergindo. Mário, nos seus artigos de crítica literária, ele sempre dizia que a inteligência arguta de Alceu era necessária à inteligência nacional.

E quais as principais divergências?

Nos anos 1920, a divergência principal era a opinião de Mário de que Alceu não entendia de poesia, sendo um excelente crítico de prosa e narrativa em geral, mas não de poesia. Já no final dos anos 1930 e, principalmente, nos anos 1940, foi a questão religiosa: Mário fora diretamente atingido pelo Estado Novo quando exonerado da chefia do Departamento de Cultura de São Paulo e substituído por um interventor, o que agravou sua depressão no chamado “exílio no Rio”, entre 1938 e 1941. A Igreja Católica foi a primeira instituição a apoiar o Estado Novo e Alceu era o maior e principal intelectual leigo católico, então a associação foi instantânea. Inclusive, em 1939, Alceu era o reitor da antiga Universidade do Distrito Federal, no Rio e foi capaz de convencer [Getúlio] Vargas e [Gustavo] Capanema a extingui-la pois, segundo ele, estava “infestada de comunistas”. Mário não aceitou esta situação e reagiu contra ela nas últimas cartas, as mais violentas entre eles.

Quando o Mário de Andrade se refere à “liberdade de poesia” dele, em contraposição a “’verdadeiros’ poetas”, como Drummond e Manuel Bandeira, ele fala de normas técnicas?

Mário não era contra o verso metrificado, pois ele desenvolveu um padrão de poesia em conciliação com a tradição. Como Mário sempre implicava com as análises de poesia feitas por Alceu, qualquer coisa era motivo de confusão.

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Dedicatória de Mário a Alceu - chamado pelo pseudônimo Tristão de Ataíde - em sua "Pequena história da música" (Foto: Fotos Divulgação)

A essa alegada falta de ação dos católicos citada por Mário de Andrade tem algo a ver com o que levaria ao avanço atual das igrejas neopentecostais?

Era um pouco diferente, pois o que Mário não aceitava era o avanço intelectual, cultural, social e comportamental - no mundo todo - e o Brasil sempre numa posição de atraso. Para ele, Deus estava acima das religiões, pois estas pressupõem cânones, doutrina etc., impossibilitando o livre pensamento. Mário muito provavelmente era gay, e isso certamente era um drama existencial na sua vida que tinha, certamente, um desdobramento religioso de culpa etc. Daí esta dicotomia dele em relação à religião, especialmente a católica, a única que ele realmente considerava. Mário matou a religião, a Igreja, mas não conseguiu matar Deus - daí o seu drama.

Era comum, na época, um crítico como ter tanta amizade com escritores?

Sim era comum, até mesmo gerando inúmeras brigas e desentendimentos entre críticos e autores. Como a crítica literária, no Brasil, era feita apenas na imprensa através de alguns poucos críticos, era comum o contato dos autores com aqueles. No caso de Alceu, especificamente, todos que publicaram nos anos 1920 e 1930 mandaram livros pra ele e muitos trocaram quantidades imensas de cartas. A correspondência era uma forma de construção de pensamento, um laboratório de ideias, não era apenas troca de notícias e fatos.

Em que pontos a correspondência dele com autores ajuda a explicar aspectos da história política e cultural brasileira no século 20?

Em muito. O arquivo hoje salvaguardado no Caall (Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade) mantém todo o arquivo e a biblioteca que pertenceram a Alceu, é formado por 32.450 cartas que ele recebeu ao longo da vida! Sim, é este número mesmo da sua correspondência passiva, ou seja, a que ele recebeu. Como Alceu não deixava carta sem resposta, é certo que ele respondeu a todas, mantendo uma verdadeira rede epistolar com gente do Brasil e do exterior, pensando e agindo e criando nas suas cartas. Não foi apenas com escritores, mas com políticos como Gustavo Capanema, Getúlio Vargas, Carlos Lacerda etc.; com educadores como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo etc.; historiadores como Sérgio Buarque de Hollanda etc. - formando um verdadeiro painel de estudos brasileiros através da sua correspondência e das suas crônicas publicadas na imprensa.

Reprodução - Nascido no mesmo ano que Alceu, Mário morreria bem mais cedo, vítima de ataque cardíaco
Divulgação - Dedicatória de Mário a Alceu, em seu livro "A escrava que não é Isaura"
Fotos Divulgação - Dedicatória de Mário a Alceu - chamado pelo pseudônimo Tristão de Ataíde - em sua "Pequena história da música"
Reprodução - Garcia diz que a troca de ideias entre Alceu e Mário foi mudando ao longo dos anos
Reprodução - O crítico literário Alceu Amoroso Lima, principal objeto de estudo do autor de "Correspondências"