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Literatura: Elena Ferrante e a obra que fala por si

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A escritora italiana Elena Ferrante, best-seller mundial, autora da tetralogia “Série Napolitana” (R$ 44,90, cada volume, em média), que foi iniciada em 2011 com o romance “A amiga genial”, recusa-se a mostrar seu rosto na mídia. Optou, portanto, por uma atitude radical, assim como os escritores americanos J.D. Salinger e Thomas Pynchon, que sempre foram avessos também à exposição de suas vidas na imprensa falada e escrita. Ferrante no máximo responde a algumas entrevistas por e-mail, por considerar que a obra deve falar por si mesma. E ela está certa. Seus livros fascinam. Bastam por eles mesmos. Por que ser triturada, então, pelos veículos de comunicação, quando se tem tal domínio da arte da escrita?

Li a tetralogia praticamente de um fôlego só, já que a vontade de passar de um livro para o outro, seguindo as peripécias dos personagens, é incontrolável. Impossível ficar apenas em “A amiga genial – Infância e Adolescência”, história que na Itália foi publicada em 2011 pela Edizione E/O e, aqui no Brasil, foi editada dentro da Biblioteca Azul da Editora Globo em 2015, com tradução de Maurício Santana Dias. Corremos para os demais volumes da série, devorando as folhas com imensa curiosidade. São eles: “História do novo sobrenome - Juventude”, editada na Itália também 2011 e no Brasil em 2016; “História de quem foge e de quem fica – Tempo Intermédio”, publicada na Itália em 2013 e no Brasil também em 2016, e por último “História da menina perdida – Maturidade e Velhice”, que saiu na Itália em 2014 e no Brasil em 2017.

Personagens verdadeiros

Todos os quatro livros são magistrais. Elena Ferrante não precisa falar de sua vida, expô-la ao público. Suas vivências estão todas em sua tetralogia, contadas de forma saborosíssima, num estilo quase que coloquial, aquele estilo de quem narra histórias com competência e falsa simplicidade, passando para o leitor o máximo de veracidade. Estilo de quem leu muito. Pois só tendo lido muito se escreve como ela escreve. Por outro lado, ninguém faria um painel tão completo dos costumes vigentes na sociedade de Nápoles, durante a década de 50 até o ano 2000, sem que lá não tivesse vivido. Logo, é fácil concluir que Ferrante é de origem napolitana, não importando onde esteja vivendo nos dias de hoje. Ela conhece as entranhas da vida política, social e econômica da principal cidade do Sul da Itália, aquela que já foi um reino, sendo capaz de descrever em minúcias o que lá acontecia nos anos de chumbo, aqueles anos de sequestros, assassinatos, radicalizações políticas, brigas sangrentas no meio das praças entre jovens comunistas e fascistas.

Duvido que ela tenha criado os personagens que pertenciam ao bairro pobre no qual localizou sua longa narrativa desdobrada em quatro corpulentos livros. Para mim seus personagens tiveram modelos vivos. Se não os copiou pura e simplesmente, no máximo fundiu vários caracteres num só. Mas creio que a primeira hipótese é mais provável. Ou seja, ela transportou a realidade para a ficção, e é por isso que seus livros, com sabor de verdade, nos agarram pela alma e pelo coração. Eles transpiram a alma napolitana. Em todo início dos livros da tetralogia, Elena Ferrante nos oferece uma lista de personagens, mais precisamente das famílias que compõem o complexo quadro que montou. São elas: a família Cerullo; a família Greco; a família Carracci; a família Peluso; a família Cappucio; a família Sarratore; a família Scanno; a família Solara; a família Spagnuolo; alguns professores, uma amiga de uma professora que morava em Ischia, um filho de farmacêutico.

Fora os mafiosos, que conseguiam ter um nível de vida melhorzinho devido à agiotagem, às chantagens e aos assassinatos, eram famílias de pessoas pobres e sofridas, de baixa renda, cujos filhos só poderiam subir na vida através de muito estudo ou exercendo atividades comerciais controladas pela Máfia ou Camorra, isto é, assumindo riscos. O escape através da leitura e do estudo foi vivenciado por pouquíssimos protagonistas, já que os livros e o material escolar eram caros (sempre o são), sem falar que era impossível frequentar as boas escolas de Nápoles. Fernando Cerullo era sapateiro, casado com Nunzia e pai de Rino e Raffaella, também chamada de Lina ou Lila (só por Elena Greco). O patriarca da família Greco era contínuo da prefeitura. Sua mulher, manca e estrábica, tivera quatro filhos: Elena, Peppe, Gianni e Elisa. Dom Achille Carraci era agiota e contrabandista. Casado com Maria, era o pai de Stefano, Pinuccia e Alfonso. Alfredo Peluso era marceneiro. Sua mulher se chamava Giuseppina Peluso e os filhos mais velhos eram Pasquale, pedreiro, e Carmela.

Cappuccio era a família da “viúva louca”, Melina, que sobrevivia lavando escadas juntamente com a filha. O marido, que descarregava caixas num hortifrúti, morrera em circunstâncias obscuras. Os filhos mais velhos se chamavam Ada e Antônio. Donato Sarratore era ferroviário, jornalista e poeta. Casado com Lídia, tinha cinco filhos: Nino, Marisa, Pino, Clelia e Gianni. Nicola Scanno era verdureiro, Sua mulher se chamava Assunta e o filho Enzo também era verdureiro. Os Solara eram donos do bar-confeitaria Solara. Tinham dinheiro. Silvio Solara era o dono do negócio. Quem o enfrentasse corria risco de vida. A mulher se chamava Manuela e os filhos Marcello e Michele. Spagnuolo era confeiteiro do bar-confeitaria Solara. Sua mulher era Rosa e a filha mais velha se chamava Gigliola. Os professores se chamavam Ferraro, que também era bibliotecário, Oliveiro, Gerace e Galiani.

Quem inventa isso? Ninguém. A lista de personagens de Ferrante é muito parecida em sua estrutura com a lista que Thomas Mann criou ao escrever seu livro “Os Buddenbrooks”, feita com base em pessoas reais de Lubeck, sua cidade natal. Tanto que depois da edição do livro Lubeck ficaria brigada com o ganhador do Nobel por muitos anos. No caso de Elena Ferrante, impossível os napolitanos brigarem com ela por causa de sua obra, até porque, por mais investigações que tenham sido feitas a seu respeito, ninguém sabe quem ela é na realidade. Por outro lado, Mann mexeu com membros honoráveis da sociedade de Lubeck, ferindo o orgulho dos notáveis. E a escritora italiana descreveu a vida membros da classe baixa, que não teriam como se proteger de seus livros e provavelmente não teriam tempo para se preocupar com isso, tão preocupados estavam e devem estar com sua sobrevivência.

Lila e Elena, amigas e rivais

As heroínas ou grandes protagonistas da Série Napolitana de Elena Ferrante são as amigas Lila (Raffella Cerullo) e Elena (Greco). “A amiga genial” é uma história contada por Elena Greco, personagem que é escritora no livro (não deve ser por acaso que tem o nome de autora da série), a partir do sumiço da amiga Lila. Rino, o filho de Lila, telefona para Elena avisando desesperado que a mãe desaparecera sem deixar vestígios. A partir daí, Elena resolve contar a história da vida das duas, já que a narrativa detalhada seria uma forma de assegurar que Lila nunca mais poderia desaparecer, ficando presa no papel.

Elena admirava a amiga, que sempre se virara na vida apesar de não poder estudar como ela, e ao mesmo tempo nutria por Lila um sentimento de rivalidade e até mesmo de ódio, tanto era dependente de sua vitalidade e criatividade para se sentir viva e criativa. A história de “A amiga genial” vai começar com Lila jogando as bonecas das duas num porão sórdido, que pertencia a Dom Achille, “um monstro, ogro de fábulas”, como o agiota era visto no bairro, por fazer com que os seus devedores vivessem em estado de terror. A boneca de Elena se chamava Tina e era muito bela e a de Elena, Nu, era bem mais simplória. Lila era sempre capaz de maldades, como jogar as bonecas no porão, descobriria a amiga ao longo da vida. O último volume da tetralogia, fechando o ciclo, terminará com um fecho que envolve o incidente das bonecas perdidas.

Apesar de ser loura, bem feita de corpo e de olhos azuis, ou seja, dona de uma beleza tradicional como a de sua boneca, Elena admirava a beleza ímpar da amiga, chegando a invejá-la. Morena, magra, pálida, Lila tinha uma inteligência aguda e parecia ter uma eletricidade no corpo que deixava os homens doidos. Quando estava furiosa, fechava bem os olhos, só deixando passar no olhar uma fímbria hipnótica de raiva concentrada. Tendo lido e estudado muito, Elena, que cursaria universidade em Pizza, se tornaria capaz de fazer livros, conseguindo obter bastante sucesso no mercado editorial, mas as habilidades de Lila a esmagariam sempre, porque eram ilimitadas, como Raffaela Cerullo provaria ao longo de sua existência, fazendo com que a escritora napolitana considerasse que nunca a ultrapassaria, fizesse o que fizesse na vida.

Tendo tido vários namorados e maridos, as duas, na vida afetiva, teriam um ponto em comum: o amor por Nino Sarratore. Teriam filhos com ele. Mas Nino, que recriminava o pai Donato por ser um mulherengo e ter feito a mãe Lídia sofrer, adulto também se tornaria um contumaz mulherengo, de caráter duvidoso, fazendo com que as duas amigas, em épocas diferentes, sofressem muito por causa dele. No pano de fundo das aventuras amorosas, estará sempre a política e a ação da Máfia. O livro mais duro é o último, o intitulado “A história da menina perdida”. Pela violência e pela própria história da menina perdida, Tina, filha de Lila com Enzo, que faz chorar.

Leiam os livros. Tenho certeza que ao começar “A amiga genial”, não irão parar, comprando e lendo os quatro romances até o fim. Vale a pena também dar uma olhada nas histórias que envolvem a identidade de Elena Ferrante, até hoje no anonimato, mesmo com o primeiro volume da tetralogia já tendo sido transformado em série pela HBO. O jornalista italiano Tommaso Debenedetti afirmou, num ensaio, que havia descoberto a identidade da consagrada escritora. Segundo ele, Ferrante seria uma tradutora, Ana Raja, de origem alemã, cujos pais haviam se mudado para a Itália após o fim da Segunda Guerra Mundial. Raja desmentiu. Seu marido Domenico Starnone, assegurou, por sua vez, que não foi ele quem escreveu os romances. Quem foi? Não importa. Importa o prazer de ler livros bem escritos, isso sim, que nos contam uma história fantástica.

* Jornalista e escritora

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