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Crítica - Vidro: O sentido da ilusão

Divulgação -
A dra. Ellie, vivida por Sarah Paulson, tenta desbravar a psiquê vilã de Elliot, papel de Samuel L. Jackson
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Há uma frase seminal em “O sexto sentido” (1999), mais sútil e lúdica do que o desabafo que o celebrizou (“I see dead people!”), na qual se aprende: “Na vida, algumas magias podem ser reais”. Nos últimos 20 anos, período no qual se estabeleceu como um dos realizadores mais ousados de Hollywood, mesmo quando a Meca do cinemão o esnobou, Manoj Nelliyattu Shyamalan - nascido em Mahé, Pondicherry, na Índia, em 1970 – nunca abriu mão da crença no mágico, no fantástico, no ilusório. Até “Sinais” (2002), a fantasia tinha lugar encantador em sua filmografia. Depois de “A vila” (2004), sua obra-prima, ilusão passou a simbolizar opressão em seu autoralíssimo cinema, de uma carpintaria que sempre se apegou à sutileza.

Macaque in the trees
A dra. Ellie, vivida por Sarah Paulson, tenta desbravar a psiquê vilã de Elliot, papel de Samuel L. Jackson (Foto: Divulgação)

Não por acaso, seu olhar passou a gravitar para o suspense, para o terror ou para o thriller psicológico, como se vê em “Vidro” (“Glass”): uma vez que o sobrenatural passa a ser um sintoma de dominação, sua representação dá à fabulação tons sombrios. Inicialmente comparado a Alfred Hitchcock, por sua habilidade de assustar pela insinuação, Shyamalan hoje se assemelha mais a outro diretor, não por acaso, um discípulo do realizador de “Psicose”: Brian De Palma. Há um quê do velho De Palma, de “Irmãs diabólicas” (1972) e “Carrie, a estranha” (1976), no terceiro tomo da trilogia iniciada em “Corpo fechado” (2000) e continuada pelo fenômeno de bilheteria “Fragmentado” (2017).

Os dois protagonistas do primeiro, o segurança David Dunn (um Bruce Willis grisalho e apagado) e o gênio do crime Elijah Price, o Sr. Vidro (Samuel L, Jackson, luminoso), se unem ao personagem principal do outro longa, a Besta, psicopata com um transtorno de personalidade traduzido em dezenas de heterônimos encarnados com maestria por James McAvoy. Aparentemente, a junção deles seria apenas um encontro de três párias, que acreditam ser super-humanos. Mas, numa narrativa sinuosa, salpicada de viradas, com a fotografia de luz bruxuleante de Mike Gioulakis (de “Corrente do Mal”), a figura coringa da Dra. Ellie, diabólica personagem criada por Sarah Paulson, percebemos estar diante de uma alegoria política. Expert no estudo das narrativas fabulares e no valor que a vilania tem para elas, Shyamalan nos dá um ensaio sobre controle, refletindo a respeito do papel da imagem na manipulação de vontades. É um filme lento, soturno, mas arrebatador.

Muito bom - ****

*Roteirista e crítico de cinema

Tags:

cinema | crítica | vidro