ASSINE
search button

Ao arrebatar a crítica europeia com a HQ 'Luzes de Niterói', Marcello Quintanilha se firma como um dos maiores quadrinistas do mundo

Divulgação -
Craque brasileiro do quadrinho, Quintanilha brinca com a bola
Compartilhar

Choveu elogio dos maiores especialistas europeus em Banda Desenhada - termo lusitano para definir história em quadrinhos - no lançamento, no Velho Mundo, de “Luzes de Niterói”: é uma experiência narrativa digna do cinema neorrealista, mas em forma de desenhos e balões. Um experimento que vem ampliando o prestígio de Marcello Quintanilha para além das fronteiras brasileiras. Lá fora, o gibi saiu pela editora Polvo, mas aqui, o álbum (de um colorido seco, sem firulas) sai só no mês que vem, editado pela Veneta. É um mergulho em águas pardacentas de saudade dos anos 1950, com base em memórias do autor de “Tungstênio” (um cult de 2014, transformado em filme em 2018) e “Talco de vidro” (2015). São recordações (e reinvenções) acerca de seu pai, acerca do futebol jogado por operários de fábricas e acerca de um Brasil idílico, de Bossa Nova, de Oscarito... Temos dois pescadores em busca de sustento, com um vocabulário bem regional, numa aventura que escorre para a saga de um craque da bola (ou quase). Definido no exterior como “uma espécie de Dino Risi do quadrinho”, em comparação ao mítico diretor das “comédias tristes” da Itália, como o sucesso “Aquele que sabe viver” (1962), o niteroiense de 47 anos, hoje um dos mais aclamados artistas gráficos das HQs, colhe os louros da boa recepção a seu mais recente trabalho. “É um impressionante afresco social, mais próximo de Balzac que da crônica esportiva”, elogiou a revista “Télerama”, da França – onde sua fama internacional começou.

Macaque in the trees
Craque brasileiro do quadrinho, Quintanilha brinca com a bola (Foto: Divulgação)

Aclamado por seus diálogos curtos (de uma poesia áspera), Quintanilha tem um novo compromisso firmado em solo francês, agora com o Festival de Angoulême, o maior evento de análise crítica sobre graphic novels, tirinhas e gibis afins no mundo. Criada em 1974, a feira, dedicada a novas tendências estéticas quadrinísticas, ocorre em janeiro, e o conterrâneo de Arariboia já foi premiado lá, há quatro anos, pela excelência de “Tungstênio”, que o cineasta pernambucano Heitor Dhalia filmou. Este ano, o fórum das HQs vai de 24 a 27 deste mês, período em que Quintanilha estará criando um painel ao vivo, com mais dois artistas. Ele tem ainda três dias de autógrafos pela frente, no qual exemplares de “Luzes...” devem pipocar à frente do artista, um escorpiano, que começou a publicar em 1988. Concorreu ao troféu Jabuti, em 2017, com “Hinário Nacional”, e revisitou sua própria cria, no ano passado, com a antologia “Todos os Santos”. Mas há uma nostalgia mais doída, talvez mais pessoal, em seu regresso ao passado da cidade natal. “Todas as minhas histórias são extremamente pessoais e não posso definir aspectos onde me revele mais, porque isso acontece em relação à narrativa como um todo”, diz o ás do desenho, que, na entrevista a seguir, faz um balanço de sua obra.

JORNAL DO BRASIL - Em meio aos elogios do mercado editorial europeu para “Luzes de Niterói”, você vai ganhar um painel só pra si, a partir do dia 24 de janeiro, na França, no Festival de Angoulême, o mais prestigiado fórum de debate sobre a linguagem das HQs no mundo. O que o evento representa para a sua carreira, hoje cada vez mais reconhecida no exterior?

MARCELO QUINTANILHA - Este ano, está programado em Angoulême a pintura de um mural ao vivo, que farei com dois outros artistas, Alexandre Clarisse e Simon Hureau, começando já no dia 24. Além disso, vou ter sessões de autógrafos dos dias 25 a 27. O festival é maravilhoso. E o que de melhor eu guardo do festival é o contato com o público, sempre tão atencioso. Em 2016, recebi lá o prêmio Fauve Polar por “Tungstênio”, e foi algo fantástico.

Para um artista que já transformou cidades em desenhos e em narrativas, o que aquela Niterói de peixes, gols e tecidos simboliza?

Sem dúvida, há ali uma série de elementos que me constituíram como pessoa, mas há também a conexão com a história de um país que parecia querer encontrar seu lugar no mundo depois do impulso econômico do pós-guerra. Um conjunto de coisas e valores dos quais parecemos cada dia mais distanciados, mas que estão na raiz do desenvolvimento da cultura brasileira de massas como a entendemos hoje, eternizados nas chanchadas, na MPB, no mito do futebol oriundo das fábricas, etc.

Qual é a representatividade do mar, da água, na sua obra, seja a salobra da Bahia, sejam as ondas de Niterói?

O mar está sempre presente. Sua densidade nos obriga a sentir o espaço à nossa volta, uma vez submersos. Tendo vivido em constante contato com a água em minha infância e adolescência, o fluxo incessante das ondas me faz sentir em comunhão com a marcha inexorável dos acontecimentos cotidianos, incontrolável, por mais que nos empenhemos em administrar as situações; tempestuosa, ainda que procuremos atenuar a brutalidade o dia a dia. Sua matéria é a solidão e sua métrica, a passagem do tempo.

Macaque in the trees
Página de 'Luzes de Niterói' (Foto: Reprodução)

Qual é o lugar consciente do realismo na sua obra e o quanto a relação com a memória é determinante para um quadrinho como “Luzes de Niterói”?

O realismo é a substância primordial do meu trabalho, da qual me aproprio para operar uma conversão em chave ficcional, frequentemente subvertendo algumas de suas premissas em favor de um resultado expressionista. Como parte indissolúvel desta substância, a memória deixa de cumprir o papel de arquivo de experiências remotas, para atuar como engrenagem da realidade tangível, uma vez que nunca me senti distanciado do meu passado.

O que o quadrinho ainda representa como espaço de expressão autoral?

Exatamente o que sempre representou, como qualquer meio de expressão, o que, seguramente, é o que mais me interessa nessa dinâmica, ou seja, a comunicação promovida pela experiência íntima da leitura, ampliando nosso dicionário de símbolos a partir da apreensão do universo de códigos intrínsecos à linguagem dos quadrinhos.

*Roteirista e crítico de cinema

Reprodução - Página de 'Luzes de Niterói'