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A mão que faz a letra

Paulo Sérgio Valle relembra trajetória e carreira musical em livro de contos e poemas

Acervo pessoal -
Seleção da gravadora Polygram, em 1973: Cafuringa, Paulo Sergio, Ivan Lins, Armando Pittigliani, Fagner, Oberdan e Erlon Chaves. Agachados: Luiz Melodia, Jorge Benjor, Rogério, Odair José e Paulinho Tapajós
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Cronistas de uma sociedade, os grandes compositores conseguem construir obras melhores quando possuem boas histórias para contar. Imagine se o autor em questão já tiver se formado em Direito, ter sido piloto de aviação comercial, surfista, triatleta, publicitário, poeta e escritor, entre outras facetas? Assim é Paulo Sérgio Valle, que assina cerca de 800 canções em vários estilos, várias delas grandes sucessos da MPB nas vozes de Elis Regina, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Simone, Roberto Carlos, Herbert Vianna, Ivete Sangalo, Chitãozinho e Xororó e Só Pra Contrariar, além da diva do jazz Sarah Vaughan. Aos 78 anos, Paulo Sérgio, com seu inseparável cachimbo, desencava nos arquivos da memória as crônicas, poemas e frases soltas que formam “Contos e letras – uma passagem pelo tempo” (Litteris Editora), seu sétimo livro, que será lançado hoje, às 19h, na Livraria Travessa do Shopping Leblon.

Macaque in the trees
O compositor e escritor e seu inseparável cachimbo (Foto: Acervo pessoal)

Sob uma narrativa descompromissada, praticamente interativa, Paulo Sérgio recorda fatos marcantes desde a época em que pilotava um bimotor DC-3, da Cruzeiro do Sul, em meados dos anos 1960, quando, ao lado do irmão Marcos, já compunha com grandes nomes da música brasileira. Integrou o que se convencionou chamar de segunda geração da Bossa Nova junto com o irmão, Edu Lobo, Francis Hime e Dori Caymmi. E foi em meio a nuvens que o compositor, um antigo leitor de Saint-Exupéry – que pilotava ultraleves como hobby até cinco anos atrás -, vislumbrou versos como “É eu vou pro ar / No azul mais lido / Eu vou morar / Eu quero um lugar / Que não tenha dono / Qualquer lugar” (“Linha do horizonte”).

“O título do livro é autoexplicativo. É a minha vida dividida em contos, sem compromisso fechado com a cronologia”, define o autor, explicando que a sequência de textos não obedece uma linha de tempo definida, tanto que os contos podem perfeitamente ser lidos fora de ordem. Por eles desfilam amores, amigos, companheiros profissionais e pessoas comuns que cruzaram o caminho do escritor nessas últimas décadas. Muitas vezes, o leitor é introduzido nos bastidores que permeiam algumas de suas mais célebres canções como também a própria história do Brasil contemporâneo. À exceção do texto em que narra sua amizade com Herbert Vianna, de quem se tornou uma espécie de pai e parceiro, todos foram escritos nos últimos seis anos. Foi um dos primeiros a ir ao hospital acompanhar a luta que o líder dos Paralamas do Sucesso travou com a morte após um grave acidente de ultraleve, que levou a vida de sua mulher Lucy, em 2001.

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Capa do novo livro (Foto: Acervo pessoal)

Com o autor do clássico “Preciso aprender a ser só”, testemunhamos valiosas lições de vida de um homem que edificou sólidas amizades. O letrista de “Samba de verão” também fala de sua paixão pelo esporte que o levou a competir como triatleta nos anos 1960 sendo um dos pioneiros da hercúlea modalidade no Brasil. Mas como um compositor conseguia conciliar o lado boêmio com uma estafante rotina de treinamentos que incluía correr e pedalar dezenas de quilômetros e nadar em mar aberto? “O esporte me ensinou a ser disciplinado, um cara que nunca de deixou de treinar pela manhã e trabalhar a minha parte de criação à tarde”, confidencia com ar de sabedoria que a terceira idade lhe confere.

Se deixou de desbravar as ondas do mar a braçadas ou correr longas distâncias com seus pés, da bicicleta não desgarrou. Ao lado da mulher Milena, também ciclista, fez inúmeras viagens sob os giros do pedal. Percorreu as praias da Bahia, fazendo a rota do descobrimento de Prado a Cabrália, o sertão do Cariri, a serra da Bocaina. No exterior, pedalou por Marrocos, pelos vinhedos da Borgonha, cruzou os Andes de Bariloche a Puerto Montt, e fez de bicicleta o Caminho de Santiago de Compostela por quatro vezes. Em ´média, os 1,2 km da histórica trilha de peregrinos eram cobertos em 14 dias com muito planejamento de navegação, como convém a um piloto de aviação. “Pedalando me inspirei a escrever os livros ‘O ajustador de profecias’ e ‘Pedalando pelo caminho de Santiago de Compostela’. Muitas letras de música nasceram nesses momentos também pois, na verdade, viajar de bicicleta não é apenas uma viagem geográfica; é pedalar pelo mundo dos sonhos”, conclui. 

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Os irmãos Paulo e Marcos, parceiros de vida e canções (Foto: Acervo pessoal)

O poeta diante do rei

Mesmo já sendo um compositor calejado nos anos 1970, Paulo Sérgio Valle sentiu um autêntico frio na barriga de iniciante como quando compôs pela primeira vez músicas para Roberto Carlos. “Às vezes penso”, de 1979, abriu as portas para outros 19 trabalhos. A ideia partiu do maestro e parceiro Eduardo Lages, arranjador que trabalha há décadas com o Rei. “Ele me avisou para não escrever com caneta preta, só azul. Quando o Roberto não gostava de uma palavra, sublinhava e dizia: ‘Essa eu não falo’. Às vezes, mandava na lata: ‘Gostei, mas faz outra”, diverte-se o autor, admitindo que este batismo de fogo diante de um monstro sagrado da MPB lhe deixou muito à vontade para ingressar em outros estilos, sobretudo as canções populares como “Evidências”, parceria com José Augusto, que virou hit nas vozes dos sertanejos Chitãozinho e Xororó.

A primeira canção gravada foi uma parceria com o irmão. Paulo Sérgio tinha 23 anos e Marcos, 20, quando “Sonho de Maria” foi lançada pelo Tamba Trio. Em 1965, “Samba de Verão” alcançava o segundo lugar na parada de sucessos... dos Estados Unidos! A canção acabou sendo gravada por mais de 80 artistas.

Na década de 1970, alternou as composições com trabalho em agências de publicidade para as quais criou jingles. Desta época nascem trilhas sonoras para novelas (“Pigmaleão 70” e “Selva de pedra”) e filmes (“O sequestro” e “Fabuloso Fittipaldi”). Em 1971, os irmãos Valle venceram a IV Olimpíada da Canção de Atenas, com “Minha voz virá do sol da América”. Outro clássico veio da parceria com Marcos Valle e Nelson Motta é do trio o tema de fim de ano da TV Globo, “Um novo tempo”, até hoje veiculado pela emissora. Entre os parceiros deste período, destacam-se Eumir Deodato, João Donato, Egberto Gismonti e Taiguara.

Sempre buscando novas sonoridades, uniu-se a Chico Roque para compor “Essa tal liberdade”, gravada pelo grupo de pagode Só Pra Contrariar. Nos anos 90, Paulo Sérgio fazia sua primeira parceria com Herbert Vianna -“Se eu não te amasse tanto assim”, que não guardava muita relação com os Paralamas. “É uma canção de silêncios e pausas. No início, só tinha o primeiro verso pronto. Herbert fez a melodia. Quando terminamos, a canção ficou linda. Mas a gente se perguntava: quem vai querer gravar? O Marcelo Castello Branco (diretor executivo da União Brasileira de Compositores) chamou a Ivete (Sangalo). Ela cantou. Ficou maravilhoso. Foi um ponto de virada na carreira dela”, acredita Paulo Sérgio. Também com Herbert escreveu “Onde quer que eu vá” e “Hoje canções”.

Nos tempos digitais, Paulo Sérgio admite não estar muito à vontade com os novos formatos de produção. “Ultimamente não tenho feito muita coisa. Cada geração tem a sua trilha sonora e eu tenho que fazer o que sei, o que gosto e me deixa à vontade, não ser artificial”, resume. Sobre a possibilidade de uma nova parceria de berço com o irmão, observa que Marcos “está fazendo muitos shows e eu ando meio preguiçoso”.

Se novas canções virão por aí, faz suspense. Mas já avisa que a verve do escritor não cessa, pois assim é o carpinteiro de palavra que moldou com suas mãos versos de inconformidade como “A mão que toca o violão / Se for preciso vai à guerra” (“Viola enluarada”, parceria brilhante com Marcos). “Passei os últimos seis anos escrevendo este livro. Daqui a dois anos, espero lançar mais um”, avisa. Como a poesia está em toda parte, inspiração não lhe faltará.

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Serviço

CONTOS E LETRAS – UMA PASSAGEM PELO TEMPO - De Paulo Sérgio Valle. Editora Litteris. 272 págs. R$ 45. Lançamento hoje, às 19h, na Livraria Travessa do Shopping Leblon (Av. Afrânio de Melo Franco, 290 / 205A)