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Literatura: Reveladoras epifanias literárias de Joyce

Divulgação -
Epifanias
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Epifania é uma aparição ou revelação dos deuses para os gregos. Para os cristãos, uma revelação divina de Deus, Jesus Cristo ou de santos. No caso da literatura, são momentos mágicos vividos pelo escritor no dia-a-dia, momentos sobrenaturais ou os mais triviais possíveis, carregados de significados, isto é, polissêmicos, capazes de o levarem à criação literária. Por mero acaso, sofri uma revelação ou insight abissal, tendo caído num verdadeiro precipício literário ao comprar o livro “Epifanias”, de James Joyce, editado pela Autêntica, dentro da coleção Mimo (160 págs., R$ 59,80). Na livraria, ao adquiri-lo, tive uma intuição de que se tratava de algo muito bom, encantada que ficara com a beleza das páginas, a disposição gráfica dos pequenos textos e as belíssimas fotos de Dublin feitas pela fotógrafa americana Lee Miller, em 1946, mas estava longe de saber o que me esperava.

Pois o livro mesmo um mimo de extrema delicadeza, uma joia perfeita, diamante sem jaça, uma pérola. E sem dúvida um presente dos deuses, consistindo ele mesmo uma vertiginosa experiência epifânica no tocante aos mistérios da criação literária de James Joyce, funcionando como as portas do Paraíso para quem é curioso a respeito do processo criativo do magistral autor de obras-primas como “Retrato de um artista quando jovem” e “Ulisses”. Pois nos concede várias chaves para entrar em seu mundo de textos enigmáticos e fragmentários, que revolucionaram a literatura do século XX, e entendê-los melhor.

Traduzido e organizado por Thomaz Tadeu, o volume, que traz na capa uma das fotos feitas para a revista Vogue por Lee, contém quarenta epifanias escritas por James Joyce entre 1901 e 1903. São textos curtíssimos sobre fatos marcantes, conversas ouvidas em casa ou nas ruas, acontecimentos ocorridos em Dublin presenciados por um Joyce menino ou adolescente, que anos mais tarde os repassaria para seus cadernos de anotações, a fim de eternizá-los ao transformá-los em literatura. O escritor irlandês, que nasceu em Terenure em 2 de fevereiro de 1882, morou em Trieste com a mulher Nora, e morreu em Zurique em 13 de janeiro de 1941, ao todo escreveu 72 epifanias. Mas primeiramente foram editadas em 1965 por Robert Scholes e Richard Cain apenas quarenta, as mesmas quarenta que se encontram no volume da Autêntica. Depois é que se encontraram outras trinta e duas, que estavam em poder de seu irmão Stanislaus.

O livro da Autêntica também presenteia o leitor com notas de Tadeu sobre cada um dos quarenta textos, explicando seu conteúdo familiar e o contexto dublinense; um pequeno estudo sobre os vários conceitos de Epifania, existentes desde a criação da palavra pelos gregos, e um Posfácio de Ilaria Natali, denominado “As epifanias na obra de Joyce: história e percurso”. Natali é quem nos abre as portas de Joyce, com uma análise sábia e culta sobre o papel dos momentos epifânicos em seus romances, desde “Stephen Hero” ou “Stephen Herói” (1944), o primeiro livro que só foi publicado postumamente, até “Finnegans Wake” (1939).

Macaque in the trees
Epifanias (Foto: Divulgação)

Exemplos de Epifanias

Para se entender o que eram as epifanias de Joyce, a importância das profundas vivências cotidianas na sensibilidade e psicologia do icônico autor, sua plurissignificação simbólica e misteriosa, não tem jeito...tenho que transcrever algumas das quarenta que fazem parte do livro. Escolhi a esmo seis. São descrições, mas também há diálogos. Comecemos pela Epifania número 1 do livro. Fala sobre uma situação que teve ter provocado uma espécie de terror infantil, daqueles que duram segundos eternos:

“(Bray, na sala de casa em Martello Terrace)

Sr. Vance - (chega com uma vara)...Oh, a senhora entende, ele tem que pedir desculpas, Sra. Joyce.

Sra. Joyce – Oh, sim....Ouviu isso, Jim?

Sr. Vance – Senão – se ele não se desculpar – as águias vêm tirar os olhos dele fora.

Sra. Joyce – Oh, mais tenho certeza de que ele vai se desculpar.

Joyce – (embaixo da mesa, para si mesmo)

- Os olhos dele fora

Agora

Agora

Os olhos dele fora.

Agora

Os olhos dele fora.

Os olhos dele fora.

Agora.

Na Epifania nº 6, Joyce nos pinta um cenário de Inferno:

“Um pequeno campo de hirtas ervas daninhas e cardos fervilha de formas confusas, metade homem, metade cabra. Arrastando as longas caudas movem-se pra cá e pra lá, agressivas. A cara é levemente barbada, pontuda e cinzenta como látex. Um secreto pecado pessoal as conduz, fazendo-as se agarrarem agora, como que em reação, a uma constante malevolência. Uma delas estreita em volta do corpo uma jaqueta rota de flanela; outra lamenta-se monotonamente quando a barba se prende nas hirtas ervas daninhas. Movem-se ao meu redor, cercando-me, o velho pecado aguçando-lhes a crueldade nos olhos, sibilando pelos campos em círculos lentos, arremetendo para o alto as suas terríveis caras. Socorro!”

Já a Epifania nº18 é adorável. Fala de estrelas no nariz de Joyce:

“ (Dublin. Na North Circular Road: Natal)

Srta. O’Callaghan – (ceceia) – Eu lhe disse o nome, A freira escapada.

Dick Sheehy - (alto) – Ah, eu não leria um livro desses...Tenho que perguntar ao Joyce. Diga-me, Joyce, você alguma vez leu A freira escapada?

Joyce – Observo que um certo fenômeno ocorre por volta dessa hora.

Dick Sheehy – (à Srta. O”Callaghan) – Você alguma vez observou como…as estrelas surgem na ponta do nariz de Joyce por volta dessa hora?...(ela sorri)...Porque eu observo esse fenômeno.”

A Epifania nº 19 diz respeito à morte de um irmão mais jovem.

“(Dublin: em casa na Glengariff Parade: fim de tarde)

Sra. Joyce – (toda vermelha, tremendo, aparece na porta da sala)...Jim!

Joyce – (ao piano)...Sim?

Sra. Joyce – Você sabe alguma coisa sobre o corpo? Que devo fazer?...Tem um pus escorrendo do buraco da barriga do Georgie....Você alguma vez ouviu falar de algo parecido?

Joyce – (surpreso) ...Não sei...

Sra. Joyce – Devo mandar buscar o doutor, você acha?

Joyce – Não sei...que buraco?

Sra. Joyce – (impaciente)...O buraco que todos nós temos...aqui (aponta)...

Joyce - (levanta-se)”

Há outras sobre a morte do irmão. O funeral, a perda. Em muitas, além da mãe, as tias estão presentes. Em várias serão descritas com poucas palavras horas de encantamento com mulheres e há até mesmo uma sobre as garotas do bairro importunando um menininho Joyce sobre quem era sua namoradinha. Mas o garoto resiste e não revela o nome da sortuda. Mesmo que tratem de assuntos paralelos são completamente diferentes, merecendo todas elas serem lidas, o que se faz rapidamente, por se tratarem de textos muito pequenos, concisos como um poema. Uma bem importante talvez seja a de número 13 no qual Joyce delineia seu desastrado destino literário, no que diz respeito às finanças:

“(Dublin: na casa dos Sheehys, Belvedare Place)

Fallon – (de passagem) – Disseram-me para parabenizá-lo em especial por seu desempenho.

Joyce – Obrigado

Blake – (após uma pausa)...Nunca aconselharia ninguém a...Oh, é uma vida terrível...

Joyce – Ah...

Blake- (entre baforadas de fumo) – claro...parece tudo muito bem visto de fora...para que os que não conhecem...Mas para quem conhece...é realmente terrível...um toco de vela, nenhuma... comida, esquálido...pobreza...Você simplesmente não tem ideia..”.

Claro que Blake estava se referindo à vida de poeta, contista, dramaturgo e romancista. E a vida de Joyce foi dura mesmo, já que além de escritor foi professor, outra profissão que não dá muito dinheiro. Teve mito coragem ao optar por tal caminho pedregoso, sobretudo quando se pensa que o pai, que fora coletor de impostos, tivera uma vida profissional desastrosa (seria demitido), rolando barreira abaixo na escala social e acabando como um irremediável alcoólatra. Mas fato é que escritores e poetas muitas vezes não têm outra opção na vida. A artista é artista. Por isso que Thomas |Mann, que se casou com uma mulher bem rica que o livrou desta sina atroz, falava em maldição.

Voltando às Epifanias de Joyce. Ilaria vai nos contar que muito do que ele escreveu em seus cadernos de anotações e chamou de Epifania depois usaria em seus principais romances, ipisae litterae ou aumentando os textos, modificando-os, aperfeiçoando-as. Ela prova isso em seu ensaio, nos mostrando o que ele fez com as descrições epifânicas originais em “Stephen Herói”, “Retrato de um artista quando jovem”, “Ulisses” e “Finnegans Wake”. Em outras palavras, todas as Epifanias criadas por ele serviram de base para a criação de textos literários maiores. É o caso, por exemplo, da primeira do livro da Autêntica. A ameaça sobre águias que comerão os olhos do menino se encontram metamorfoseadas em outros livros da pena do autor. O mesmo ocorrendo com a morte de Georgie, o irmão que faleceu aos quartoze anos de febre tifoide. Aquele cujo corpo estava com pus no umbigo.

Ilaria nos ensina, portanto, a partir de James Joyce, que todas as nossas experiências podem ser utilizadas num romance, sobretudo quando são revelações dos deuses ou da fragilidade da condição humana. Enfim, tudo é literatura. Comprem o livro. Aprenderão com Joyce e Ilaria e quem sabe tomarão coragem para sair pelas ruas (ou dentro de casa) fazendo anotações e futuramente escrever um romance. Que poderá ser o maior romance moderno do novo milênio ou não.

* Jornalista e escritora