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Marco Bellocchio filma no Rio a história de Tommaso Buscetta, mafioso que delatou a Cosa Nostra, em sua passagem pelo Brasil

Divulgação -
O ator italiano Pierfrancesco Favino interpreta Buscetta, preso duas vezes no Brasil
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Um dos pilares do cinema moderno na Itália, na geração que herdou as inquietações sociais do neorrealismo, Marco Bellocchio tem hoje nas mãos horas e horas de material rodado no Rio de Janeiro que recriam a atmosfera de transformação política da cidade, no início dos anos 1980 (ainda em dias de ditadura), quando o mafioso Tommaso Buscetta (1928-2000) fez o Brasil de lar, no abraço sempre caloroso de sua mulher, a carioca Maria Cristina de Almeida Guimarães. Uma das sequências, rodadas numa clínica em Botafogo, pelo realizador de 79 anos, aclamado pela crítica mundial já em sua estreia em longas-metragens, com “De punhos cerrados” (1965), recria uma visita do gângster (vivido pelo ator Pierfrancesco Favino) a um cirurgião que operou seu rosto (papel de Nicola Siri). Com faixas na cabeça, ainda sob a dor da cirurgia, o criminoso que aderiu à Cosa Nostra aos 17 anos, a fim de driblar a pobreza nas ruas de Palermo, vê ali o que pode ser o seu futuro, a sua redenção ou a sua queda. Essa é a discussão aberta por “O traidor” (“Il traditore”), que encerrou suas filmagens no Rio no último dia 22, tendo os irmãos Caio e Fabiano Gullane (de “Que horas ela volta?”) como seus produtores brasileiros. E coube à atriz Maria Fernanda Cândido viver Maria Cristina numa trama que promete fugir de todas as convenções dos filmes de máfia.

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O ator italiano Pierfrancesco Favino interpreta Buscetta, preso duas vezes no Brasil (Foto: Divulgação)

“Existe um código de honra que norteia Buschetta e os homens que integraram a Cosa Nostra na época em que ele aderiu à máfia, lá pelo fim dos anos 1940, quando tradição era lei, sem que se matassem padres, mulheres e crianças no jogo do crime. Este filme é um estudo sobre a dimensão moral que cerca uma traição, gesto que depende da palavra, desafiando o que foi escrito, ideologicamente, nessa tal tradição. Sou um cineasta atento ao silêncio, que busca um entendimento da dimensão trágica da quietude, mas que, aqui, encontro uma situação na qual palavra é ação: é trair quem traiu o passado”, explica um sonolento Bellocchio ao JB, num lobby de hotel em Ipanema, momentos antes de ir ao set em Botafogo.

Escondido aqui para evitar um derramamento de sangue já que custara a vida de seus filhos, Buscetta foi preso no Rio, acusado de tráfico internacional de drogas e extraditado. Conseguiu fugir da cadeia e retornou ao Brasil, de onde foi expulso pela segunda vez em 1983. Foi então que fez o acordo para delatar centenas de criminosos e expor as conexões da Cosa Nostra com a política italiana. “A traição de Buscetta, ao delatar a Cosa Nostra à Justiça da Itália, é carregada de ambiguidade. Ele não trai por uma conveniência. Ele trai porque, antes dele, com a entrada do tráfico de drogas nas atividades da máfia e uma guerra de sangue, alguém desrespeitou aquilo que antes era sagrado para eles. E o sagrado é, justamente, a palavra. A palavra da honra”, diz Bellocchio, que tem no currículo sucessos de bilheteria como “Diabo no corpo” (1986). “Existe um olhar nos meus filmes de quem viu o fascismo ascender”.

Se havia uma cara de sono na figura grisalha do homem que arrebatou o prêmio de melhor roteiro do Festival de Veneza de 2003 por “Bom dia, noite” e que colecionou elogios, em 2009, na passagem de “Vincere” por Cannes, uma expressão enérgica de vitalidade botou o cansaço para correr assim que as filmagens do dia começa, marcadas por um senso de improviso. Cada dia, ele reinventa uma sequência, pedindo locação nova ou inventando uma situação a ser encarnada por seu elenco, que traz mais dois talentos brasileiros, o de Luciano Quirino (de “9mm São Paulo”) e o de Jonas Bloch (de “Amarelo manga”) à sua trupe, lotada de italianos e iluminada pelo empenho de Maria Fernanda.

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Buscetta morou no Rio com a mulher, Maria Cristina (Foto: Reprodução da Internet)

“É impressionante o quanto o Bellocchio é aberto ao instante da criação, com uma disposição generosa de ouvir a gente, de absorver nossas ideias. Eu estou vivendo uma mulher culta, de uma família influente no Rio de Janeiro dos anos 1980, que teve a coragem de desafiar as convenções da alta sociedade carioca para ficar do lado do homem que amava, um homem envolvido com o crime”, diz Maria Fernanda, que foi filmar “O traidor” após sair das filmagens de “A paixão segundo GH”, de Luiz Fernando Carvalho. “Às vezes, neste filme, eu me pergunto se a Maria Cristina reavalia as escolhas que tomou em nome desse amor”.

O mais ambicioso longa de Bellocchio

Na imprensa europeia, “O traidor” é encarado, desde já, como uma das promessas autorais do cinema para 2019, com especulações que ele possa concorrer à Palma de Ouro, em maio, em Cannes, se o material filmado for montado e finalizado a tempo, valorizando a toda a força da fotografia de Vladan Radovic (de “Loucas de alegria”) para as paisagens cariocas, seja em Santa Teresa ou na Praia de Abricó, em Colônia, na Alemanha, e na geografia italiana. “Há uma instituição que se descaracteriza em nome do dinheiro: com a entrada no tráfico de heroína, algo muda para a Costra Nostra, o que leva Buscetta a repensar seu lugar. E o Brasil vira mais do que uma rota de fuga. Aqui ele forma família, cria raízes, mesmo mudando de rosto, em operações plásticas. Essas mudanças não entram como metáforas na minha percepção desse personagem, pois é o que existe em sua intimidade que mais me interessa. Há uma coerência em seus atos que as palavras não explicam. É o que eu fui buscar entender nas imagens deste filme”, diz Bellocchio, ao explicar que Buscetta fugiu para o Brasil pela primeira vez nos anos 70, em meio a uma disputa por poder na máfia siciliana, sendo capturado aqui pelo regime militar vigente. “Não sei se consigo fazer uma analogia entre a situação do Brasil da ditadura e a situação política que vocês vivem hoje, em meio a uma discussão sobre repressão. O que posso dizer é que, no período em que Tommaso foi detido, havia uma preocupação do governo militar de que a presença de um mafioso internacional não atrapalhasse o Poder vigente de forma alguma”.

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Bellocchio investiga a essência do protagonista: "Não é o mafioso que me interessa. É o sujeito por trás dos (Foto: Divulgação/Laura Campanella)

Para evitar que a representação do Brasil incorresse em algum deslize histórico, Bellocchio trouxe para o filme o cineasta paulista André Ristum, ganhador do Kikito de melhor direção em Gramado, este ano, por “A voz do silêncio”. Ristum viveu na Itália e foi assistente de Bernardo Bertolucci (1941-2018) em “Beleza roubada” (1996). Ele entra em “O traidor” como produtor delegado, ajudando Bellocchio na harmonia com a realidade nacional. “Marco tem uma forma mais artesanal de filmar. Pra ele, uma locação revela quem um personagem é. Ele não escolhe uma locação apenas pela beleza: ela precisa significar algo que o personagem é. Isso fez com que eu me reconectasse como desejo de juventude que me levou a ser diretor”, diz Ristum, que trabalha em sintonia com os Gullane, na produção, para oferecer a Bellocchio o melhor do nosso cinema, na finalização desta produção estimada em €7,5 milhões.

Elétrico e enérgico em suas palavras de ordem (“Tem muita gente neste set. Saia quem não for indispensável à cena, por favor, agora!”, ordenava, com firmeza, mas nunca deselegante), Bellocchio se vê diante de seu trabalho mais ambicioso em cinco décadas de carreira. “Não é o mafioso que me interessa. É o sujeito por trás dos crimes”, diz Bellocchio. “Quero que ‘O traidor’ seja um filme sobre escolhas”.

*Roteirista e crítico de cinema

Reprodução da Internet - Buscetta morou no Rio com a mulher, Maria Cristina
Divulgação/Laura Campanella - Bellocchio investiga a essência do protagonista: "Não é o mafioso que me interessa. É o sujeito por trás dos