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O assombro do afeto: JB entrevista o cineasta Kiyoshi Kurosawa

Kurosawa pede licença ao terror, que o consagrou, e aposta num drama no Uzbequistão

Divulgação -
Kiyoshi Kurosawa
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Até o dia 20 de janeiro, o Festival de Berlim terá anunciado todos os concorrentes ao Urso de Ouro de 2019, em disputa de 7 a 17 de fevereiro, tendo queridinhos da crítica (François Ozon e Fatih Akin) já confirmados na competição, mas tendo forte especulação acerca da possível presença, em concurso, de diretores veteranos como Terrence Malick, Brian De Palma e um japonês que é mestre no quesito cinema de gênero: Kiyoshi Kurosawa. O sobrenome pode sugerir alguma ligação com Akira Kurisawa (1910-1998), mas não há laços de sangue nem semelhanças estéticas entre ele e o realizador de clássicos do naipe de “Os sete samurais” (1954).

Macaque in the trees
Kiyoshi Kurosawa (Foto: Divulgação)

Dono de uma das mais prolíficas filmografias do Japão na atualidade, reconhecido lá e em toda a Europa como um dos maiores artesãos do terror nas telas, graças aos cults“Creepy” (2016), “Crimes obscuros” (2006) e “Pulse” (2001), Kiyoshi, aos 63 anos, tem um projeto inédito, no qual a Berlinale está de olho, que passa longe das veredas do assombro nas quais ele se consagrou. Em “To the ends of the Earth”, há um interesse pelas vicissitudes afetivas da vida, sem interesse em assassinos ou seres do espaço. Atsuko Maeda é a protagonista, Yoko, uma estrela de um programa de TV que modifica sua percepção da realidade (e de suas emoções) ao visitar o Uzbequistão para gravar imagens para um especial para a telinha. É algo que o cineasta classifica de “melodrama metafísico”, parecido com o que fez em “Para o outro lado”, pelo qual foi premiado com uma láurea de melhor direção em Cannes, em 2015. Na entrevista a seguir, concedida na mesma Alemanha que hoje anseia por seu regresso, Kiyoshi explica ao JB quais são os novos rumos do cinema do Japão, neste ano em que o país conquistou a Palma de Ouro com “Assunto de família”, de Hirokazu Koreeda.

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Ao chegar aos 60 anos, o senhor foi alternando seus filmes fantásticos de terror ou de ficção científica com dramas ligados a jornadas. O que justifica essa mudança e que novos caminhos artísticos esse novo movimento revela?

KIYOSHI KUROSAWA - Entender o sentido do verbo “perder” é uma curiosidade que me move, assim como entender que inquietudes eu encontro diante do que existe de mais uniforme e de mais recorrente na sociedade japonesa. O contraste entre as paisagens em um país pequeno como o Japão não são fortes: transformação é uma palavra um tanto rara por aqui. Estou preparando agora um filme que tem, de novo, a questão da andança. Dada a questão da permanência que é tão cara à minha nação, eu preciso ter cautela na hora de retratar a maneira como as pessoas se transformam nos ritos de todo dia ou em situações de surpresa. Trabalhar na cartilha de gênero, com o suspense ou a sci-fi, trouxe pra mim a certeza de que a elegância é o caminho para se desnudar uma alma. Saber ser elegante exige de um artista uma predisposição à mudança. Ainda que o mundo não se altere, em seus valores, em seu balanço, um artista precisa saber mudar para retratar o que existe em sua volta, sobretudo no cinema, que já nasceu mítico. Em suas primeiras horas de vida, os Lumière, que o inventarem, produziram obras-primas. Brincar com um aparelho que fabrica imagens míticas me deu a certeza de que a inspiração para contar histórias é minha própria mudança, meu amadurecer.

Macaque in the trees
Kiyoshi Kurosawa em ação no set de filmagem (Foto: Divulgação)

Qual é o espaço para a elegância em um filme pautado pela fantasia ou pelo medo?

Estamos enfrentando momentos de crise no nosso planeta inteiro, a todo momento, que não passam por monstros, e sim por dificuldades financeiras. O dinheiro sumiu. A escassez dele hoje está produzindo violência e segregação. Eu uso a fantasia como um catalisador de metáforas sobre a nossa incapacidade de lidar com o desespero que a miséria gera. Ser explícito é imitar a miséria, pois ela é deselegante. Se eu fizer o que ela faz, ou seja, exagerar, explicar demais, eu estarei delimitando o espaço que o espectador precisa para pensar.

O senhor é saudado como mestre por sua artesania, capaz de reproduzir um ataque alienígena com poucos recursos, brincando com a luz. O que o senhor trouxe de mais pessoal, e de original, pro cinema japonês?

Nada é mais exuberante do que a normalidade: quanto mais cotidiana for uma trama, mais exotismo ela há de revelar sobre nós. Isso vem de uma escola antiga dos mestres do Japão nas telas. Por isso, o que me pauta é o respeito à tradição. Busco o que de melhor o cinema americano nos deu, em filões como o terror, e misturo com a cartilha humanista que se criou em meu país. Dar atenção ao que existe de íntimo numa relação humana pode revelar monstruosidades, entre elas o fantasma do egoísmo. O silêncio assusta mais do que o estrondo.

Seu cinema raramente se apoia em efeitos especiais ou maquiagens sofisticadas. O quanto isso é determinado por questões orçamentárias?

Quantidade às vezes se reverte em qualidade numa sociedade que valoriza o fazer, a repetição, a continuidade. Eu filmo barato, por isso filmo muito. Eu me viro com o que tenho à mão. A questão com efeitos visuais é um conceito de linguagem: o medo vem da montagem. É na edição que você cria um susto. Na edição e no som. Pra isso, eu preciso de um bom microfone e uma ilha de montagem com boa qualidade técnica. Nos cortes, eu trabalho o suspense. O que importa num filme de terror não é o monstro, mas as pessoas que fogem dele. O assombro está no olho da vítima, em como as pessoas lutam para sobreviver. E, nisso, basta ser realista: a pessoa que foge de um ET usa o que tem à mão, nem que seja a retórica para defender uma convivência pacífica possível. O segredo de trabalhar como eu faço está na realidade japonesa do cinema: lá, dezenas de bons atores de TV demonstram interesse em trabalhar em filmes de gênero cujo roteiro seja original. Se eu tiver bons atores, eu enceno a normalidade e simulo a excentricidade, o descontrole.

*Roteirista e crítico de cinema

Divulgação - Kiyoshi Kurosawa em ação no set de filmagem