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Anselmo Vasconcellos, conhecido do público por sua atuação na TV e no cinema, dirige o filme "Amor de mãe"

José Peres -
Muito conhecido do grande público pelo trabalho na TV e produções do cinema nacional, Anselmo Vasconcellos recria o mito amazônico do Boto em seu "longa-metragem pocket"
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Semanalmente no ar, como uma garantia de risos no “Zorra”, humorístico dos sábados à noite na TV Globo, Anselmo Vasconcellos chegou aos 45 anos de carreira vivendo, na prática, um papel que exige todo seu cabedal de estudos filosóficos (de bom leitor de Theodor W. Adorno), toda sua vivência em sets de clássicos modernos de nosso cinema (tipo “Eles não usam black-tie”) e sua malandragem de carioca de Bonsucesso: ele agora é um diretor. Depois de anos dando aula na Escola Martins Pena, o Actors Studio do Centro do Rio, ele passou a lecionar em oficinas Brasil adentro. Um dia, chegou a Rondônia, transformou aspirantes a estrelas em bons intérpretes e aproveitou a deixar para rodar “Amor de mãe”. É um “longa-metragem pocket”: tem cerca de 50 minutos (coisa que antes se chamava de média-metragem) e, apesar de feito em apenas quatro dias, durante um carnaval rondoniense, carrega um requinte formal e um timbre de ousadia que a gente não vê em muita superprodução nacional (e gringa) por aí.

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Muito conhecido do grande público pelo trabalho na TV e produções do cinema nacional, Anselmo Vasconcellos recria o mito amazônico do Boto em seu "longa-metragem pocket" (Foto: José Peres)

“Eu sou movido pela troca, pautado por uma lógica godardiana: um set se move pela discussão coletiva, e não pela vontade impositiva de um diretor. Tentei profissionalizar gente que queria aprender a atuar, aproveitei não atores locais dando plena liberdade ao falar coloquial deles e preservei a poesia local. Afinal, trata-se de uma história sobre as múltiplas possibilidades do amor”, diz Anselmo, que reinventa o mito amazônico do Boto, ao assumir, à frente das câmeras, o papel de um pirata que saqueia as cargas nas redes fluviais de Rondônia, dando um toque de “filme de ação” ao projeto, já exibido em Porto Velho. “Quase fiz ‘A Idade da Terra’, mas não tive essa honra, mesmo assim, tive a chance de conhecer seu diretor, Glauber Rocha, e ouvi-lo dizer: ‘Não quero planejar, quero sentir. Não entro em set para capturar, quero ser capturado’. Filmei em Rondônia à moda glauberiana: uma ideia na cabeça e um drone no céu”.

Há muito jogo de sedução em “Amor de mãe”, quando Chico Boto, o bucaneiro pós-moderno vivido pelo próprio Anselmo, entra em cena. “É o poliamor, que tem desencaretado os novos tempos”, diz o ator... e agora cineasta de 66 anos, que entra em cena com uma maquiagem de palhaço que não remonta ao circo, mas sim ao icônico arqui-inimigo do Batman, o Coringa. “Trouxe alusões ao Coringa afetado, canastrão, daquele seriado do Batman dos anos 1960, vivido pelo grande Cesar Romero. Coringa é a carta que vira o jogo, que entra em qualquer jogada”, diz ele para explicar sua própria forma de ser na arte, pelo menos desde os anos 1970, quando virou um dos mais emblemáticos astros de nossa cinematografia, com seu ar andrógino. “Eu sou fruto dos Domingos da Criação, evento que o crítico de arte Frederico Morais fazia do Museu de Arte Moderna, o MAM, levando as figuras mais interessantes da cena artística nacional pra conversar com o público. Ali, eu conheci o Helio Oiticica, o Amir Haddad e uma ideologia de livre compartilhamento de experiências sensoriais que me levou para o Teatro Ipanema, para o Grupo Opinião, e me deu a emoção da rebeldia que persigo até hoje”.

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No set de filmagem, o artista assume a direção de "Amor de mãe" (Foto: Divulgação)

Martha Alencar foi uma das produtoras com quem ele mais trabalhou. Parceira no amor e nos longas de Hugo Carvana (1937-2014), ela viu Anselmo injetar charme a um dos personagens que melhor representavam a fauna de boêmios criada por seu marido: o pintor Vão Gogo de “Bar Esperança – O último que fecha” (1983). “Todo filme do Hugo tinha que ter o Anselmo, e não apenas pela relação antiga de amizade e de parceria profissional deles. Anselmo é um ator que aproveita qualquer mínima aparição nas telas e dá peculiaridade a elas. Ele pensa cada gesto, cada respiração, cada penteado, trazendo toda a sua cultura literária, cinéfila e teatral para os sets”, diz Martha. “Anselmo não passa pelos filmes, ele marca os filmes”.

Essa marca pessoal - uma mistura de mistério, de elegância e de arguta observação da angústia nossa de cada dia – se faz notar também na maneira como ele dirige. Antes de “Amor de mãe”, Anselmo rodou um curta, “Paraíso insólito” (2017), que rodou o Brasil e o mundo em múltiplos festivais, com toques de hipismo e com um personagem inspirado por Rocky Balboa. “O cinema é a arte do ‘não representar’, é a arte do ‘sentir’. Quando eu comecei a filmar, um pouco depois de ter integrado o elenco de “Calabar” - na montagem produzida por Fernanda Montenegro e Fernando Torres, que foi adiada pela censura - fui atuar em “Se segura, Malandro”, do Carvana, e “Tudo bem”, a obra-prima do Jabor. Naquela época, lá por 1978, a câmera que se usava no Brasil, fazia um barulho... a gente usava som guia e não som direto, dublando as falas depois. O barulho nos dava uma onda, uma espécie de transe. Era um tempo em que se dizia que o ator trepava com o mundo ao interpretar. Isso me contagiou com uma libido produtiva que está aí até hoje”, diz Anselmo. “Eu cheguei aos 66 com um tesão de 18 anos. Eu não tenho melancolia, não penso ‘Ah... ontem era melhor’. Eu não estou no ontem, nem no amanhã. Estou na gira. No transe”.

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O ator na pele do travesti Eloína, no filme "República dos assassinos" (1979), de Miguel Farias Jr., um sucesso de público e de crítica (Foto: Divulgação)

Em trânsito entre o que dirige e os projeto que estrela, Anselmo fez dois longas recentes com Daniel Filho, um dos maiores campeões de bilheteria de nosso cinema. O mestre das tramas cotidianas, responsável por fenômenos populares como “Se eu fosse você” (2005), dirigiu Vasconcellos numa releitura de “Boca de Ouro”, com Marcos Palmeira no papel do Don Corleone de Madureira. Daniel ainda levou o ator para o elenco do policial “O silêncio da chuva”, que traz Lázaro Ramos na pele do delegado Espinosa. E quem olhar para a filmografia recente do cineasta, vai ver que Anselmo está sempre como ele, como um coringa.

“Anselmo é um ator que trabalha no refinamento da composição. É um ator coringa, que se adapta a qualquer personagem e gênero de filme”, define Daniel Filho, que, na televisão, em 1997, escalou Vasconcellos para viver um anti-herói que marcou toda uma geração: o Paco, de “A justiceira”, com Malu Mader armada e perigosa.

Dez anos antes de ser Paco, na TV Bandeirantes, Anselmo foi Chacal, o bicho grilo que ajudava o dono de uma fábrica de rolhas, Carlo Bronco Dinossauro (o mítico Ronald Golias), em suas trapalhadas. Era o programa “Bronco”, que apresentou a genialidade de Golias à geração Ploc dos anos 1980. “No primeiro dia de gravação, quando Golias veio falar comigo, mostrei uma carterinha escolar pra ele e pedi que ele abrisse na página 22, onde estava escrito: ‘O aluno Anselmo Carneiro Almeida Vasconcelos está expulso por ficar imitando Ronald Golias o tempo inteiro’. Bronco era um rebelde. E Golias era uma pós-graduação em humor”, conta Anselmo, que faz humor, mas já fez terrir.

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Em cena do novo filme com maquiagem que remete ao arqui-inimigo do Batman: "um Coringa canastrão" (Foto: Divulgação)

É dele o corpanzil sob as faixas egípcias enroladas na criatura de “O segredo da múmia” (1982), de Ivan Cardoso, um cult mundial em festivais de cinema fantástico. Cardoso queria Anselmo para ser um jornalista investigativo, o galã do filme. Anselmo respondeu o convite com uma contraproposta: “Quero ser a múmia, pois ela é personagem que contracena sem palavras, só com o gestual. Boris Karloff foi a múmia. Só grandes atores são múmias”, disse ele a ao mestre do terrir, numa história que vai fazer parte do documentário “Ivan, o terrível”, a cinebiografia do realizador, já em produção, com o crítico Mario Abbade como diretor.

Essa experiência no mundo das trevas foi marcante. Mas veio depois do maior trabalho de Anselmo (até aqui): seu desempenho como a travesti Eloína, a rainha da Lapa, em “República dos assassinos” (1979), de Miguel Faria Jr., um sucesso de público e crítica até hoje estudado, sobretudo pela potência de sua representação do universo LGBTQ. O beijo apaixonado trocado por Anselmo e Tonico Pereira é comovente até hoje.

“Fui chamado para o papel que depois ficou com o Tonico. Passei no teste e cheguei no Posto 9, todo feliz, pra contar para a minha namorada sobre o filme. Ela perguntou qual era a trama e contei que era uma releitura dos feitos do policial Mariel Mariscot, ligado ao Esquadrão da Morte, e que havia uma linda história de amor paralela, com uma travesti da Lapa e um bandido. Ela me olhou fundo e disse: ‘Quem vai fazer a travesti é você, né?’. Engasguei ali. Liguei pro Bigode, o diretor Luiz Carlos Lacerda, que fazia a produção para o Miguel, e perguntei quem faria Eloína. Ele me disse que o filme estava quase parando pela enorme dificuldade de encontrar um ator para o papel. Aí pedi pra ser testado. E fui, mesmo estando de bigode. Ao me maquiar, olhei no espelho e, ao ver ali, em mim, uma mulher com um bigodão, eu me senti o Freddie Mercury. Mas tinha ali o que eles precisavam. Ganhei o papel na hora”, orgulha-se Anselmo, casado há 39 anos com a veterinária Cristiana Studart, e pai de Isadora (27 anos), Vittorio (25) e Isabella (20). “Quando fui ver ‘Bohemian Rhapsody’, do qual saí carregado, de tanto chorar diante daquela beleza de filme, eu voltei àquela época da Eloína, àquele teste, àquela androginia que eu alimento”.

Inquietações dos dias de Eloína permanecem com Anselmo, na telona, na telinha, no teatro. Em 2017, Anselmo voltou aos palcos interpretando um distinto morador da Casa Branca em “O filho do presidente”, de Christopher Shinn, sob a direção de Marcus Vinícius Faustini, dando alma e corpo a uma entidade política pautada pelas aparências. “Dono de uma inteligência cênica absurda, que facilita o jogo com os colegas, Anselmo carrega consigo a história de marcos do nosso cinema e isso dá um peso à presença dele no palco”, elogia Faustini. “Ele é um ator que lê muito, que estuda, que passa pela filosofia. É um alguém profundo”.

Essa profundidade de Anselmo leva agora a um próximo projeto como cineasta, chamado “Os burocratas”, que desenvolve com alunos de diferentes escolas de cinema do Rio. “Não há recursos para cenários elaborados, então estamos trabalhando com espaços invisíveis, com a imaginação, com a libertação. Dirigir é aplicar a liberdade que aprendi a cultuar com João das Neves, com Carvana e com Leon Hirszman. Filmando “Eles não usam black-tie” com ele, Leon não usava jargões de diretor. Ele falava em energia, em batimentos cardíacos, em percepção aeroespacial. A instrução dele ao ator era: ‘Cara, entra em Alfa’. É assim que eu atuo, diz Anselmo. “Perdemos a ideia do ‘seja marginal, seja herói’, de que o Oiticica falava. Vivemos um ano de muitas perdas, de crise. Mas eu ainda estou em Alfa, para escapar dessa ordem empacada de coisas da caretice de classe média. A TV, no Brasil, é nossa Paramount, nossa RKO: é a potência, à brasileira, do que os estúdios de Hollywood são. Eu me dedico a ela com empenho. Ali tem transe. E o cinema persiste. E nele, eu hoje dirijo, pra deixar os atores à vontade, livres... em alfa como dizia o Leon. É bonito”.

*Roteirista e crítico de cinema

Divulgação - No set de filmagem, o artista assume a direção de "Amor de mãe"
Divulgação - O ator na pele do travesti Eloína, no filme "República dos assassinos" (1979), de Miguel Farias Jr., um sucesso de público e de crítica
Divulgação - Em cena do novo filme com maquiagem que remete ao arqui-inimigo do Batman: "um Coringa canastrão"