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Livro conta a história de Luiz Carlos da Vila, sambista que decifrou como poucos a alma dos bairros do Rio

Reprodução -
Luiz Carlos da Vila
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O poeta que convocou a lua de Luanda para iluminar a rua de Vila Isabel e transformou a Marquês de Sapucaí numa Kizomba, a grande festa africana, em 1988, vive nas memórias dos amigos, na genialidade de suas composições e na própria história da música e dos subúrbios do Rio de Janeiro. Todos ingredientes do livro “Princípio do infinito – Um perfil de Luiz Carlos da Vila”, lançado hoje, às 14h, na Livraria Folha Seca (R. do Ouvidor 37 - Centro, tel.: 2224-4159) com uma grande roda.

Assinada pelo professor e historiador Luiz Antonio Simas e pelo pesquisador e escritor Diogo Cunha, a obra é uma declaração de amor à cultura do samba e ao artista, que completaria 70 anos em 2019, em saborosas 144 páginas (Numa Editora, R$ 30). Um caldo da cultura e diversidade cariocas temperado com histórias de vida do compositor, que bagunçou o coreto de várias “Vilas” da Zona Norte do Rio. De acordo com sua mãe, Dona Esmerilda, o calmo menino Luiz Carlos só começou a dar trabalho ao ir para o samba.

“O Luiz gostava muito dos encontros e de reunir pessoas, fazer festa. A ideia do livro é fazer um perfil biográfico. Não me interessam os meandros da doença, mas em pensar nos encontros como a própria encarnação do Luiz, um homem que foi forjado pela história dos subúrbios do Rio, sua cultura, e que as forjou também. Quando não estamos falando dele, é dele também que estamos falando”, resume Simas.

Macaque in the trees
Luiz Carlos da Vila (Foto: Reprodução)

Alegre, doce como seu refúgio, o Cacique de Ramos, elegante até o dia que “cantou para subir”, como dizem no mundo do samba, Luiz sempre dizia estar sofrendo de hérnia de disco para driblar a preocupação dos amigos, como os autores contam no livro. A data de sua morte não pode ser mais simbólica: 20 de outubro, o Dia Nacional do Poeta. Luiz partiu aos 59 anos, vítima de um câncer, em 2008, deixando uma obra que o alçou à elite da MPB, onde figuram os nomes já mitológicos de Aldir Blanc e Paulo Cesar Pinheiro, e reconhecido pelos expoentes do gênero como um compositor genial: “É o poeta mais hiperbólico da música brasileira”, nas palavras de Arlindo Cruz.

Os autores respeitaram a alma festiva e gentil do artista e construíram um livro que passeia pelo cenário da infância de Luiz Carlos, os bairros do subúrbio da Leopoldina, como Ramos e Penha, e apresenta Luiz Carlos como um “agente civilizatório”, “um sujeito que sempre soube da relevância da rua, do congraçamento, da festa, como espaço e prática de sociabilidades, invenções, afetos, fortalecimento de laços comunitários e maneiras de tornar a vida mais leve”.

Diante do atual contexto político do Rio de Janeiro e do Brasil, com a rua “sob ataque”, como diz Simas, o que estaria fazendo Luiz Carlos da Vila? Amigo do poeta, Diogo é taxativo: “Ele continuaria fazendo festa. Nem que fosse só para ele”, brinca o historiador.

Definido como um “Salvador Dalí” das letras, tamanha a riqueza das imagens para inspiração de sua poesia, Luiz Carlos da Vila era um agitador cultural que tinha consciência do valor de valorizar a vida aqui e agora. A obra “Doce refúgio” foi feita quando uma folha caiu no copo de cerveja dentro do Cacique de Ramos. Fundador do grupo Fundo de Quintal, o sambista Ubirany o provocou: “Você não é poeta? Faz uma música para isso”. O compositor brincava as pessoas exigiam samba de tudo que lhe acontecia. Na pressão, saía.

“Tem uma faixa do disco do Candeia em que o Zé Luiz do Império canta uma letra que fala como era bom na época dos grandes mestres. O Luiz discordava: “Antigamente não, a beleza está aí para a gente ver”, define Diogo.

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Obra sobre o compositor da Vila da Penha e da Vila Isabel será lançada hoje, na Folha Seca, e traz fotos do acervo pessoal, como a dele fantasiado de índio, no colo da mãe (Foto: Reprodução)

O talento de Luiz Carlos da Vila construiu pontes entre o poeta e alguns dos deuses do panteão do samba, como Martinho da Vila - esse sim, de Vila Isabel, Luiz Carlos era da Vila da Penha, embora tenha vivido grandes passagens na escola de Noel Rosa - e seu temperamento festeiro e agregador gerou movimentos musicais como os Suburbanistas, uma versão irreverente dos Tribalistas. Em 2001, Nei Lopes, outra grande referência do poeta, havia lançado “Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos”, livro que decifra e enaltece a cultura suburbana e que tocou a alma de Luiz Carlos.

Criado no subúrbio da Leopoldina, o sambista então formou com Dorina (Irajá) e Mauro Diniz (de Oswaldo Cruz), o trio que se dedicava à poesia e cultura dos bairros que nasceram em torno das linhas férreas do Rio: “Suburbano tem sotaque fala ‘e aí, aí mermão’, fala ‘sou carioca mermo’, gosta de quintal, de comidaria, de comer galinha. O suburbano tem um jeito de falar de levar na manha. E o samba é veículo disso tudo. Apesar da alma suburbana ser única, você tem uma diversidade musical enorme”, declarou ao jornalista Hugo Sukman, para “O Globo”, em 2004.

“Ele dizia que a tribalista Marisa Monte também era suburbanista, porque era portelense, filha do Carlos Monte (pesquisador e ex-diretor cultural da Portela)”, brinca Diogo, amigo do poeta. Para Simas, a estatura da obra deixada por Luiz Carlos da Vila ainda não é valorizada como deveria ser. “O Luiz deveria ser mais reconhecido do que é. Existe a ideia de que ele é sofisticado demais para o samba e sambista demais para ser um dos grandes da MPB. É uma visão preconceituosa”, define Simas.

Não haveria outro mês para o lançamento de um perfil de Luiz Carlos da Vila, o poeta que adorava desejar “Feliz Natal” ao público, em qualquer época do ano. Havia quem estranhasse, mas os autores acham que os votos natalinos do artista se casam perfeitamente com sua personalidade:

“O Natal é um encontro feliz, como o samba. Ele só não desejava Feliz Natal no Natal”, brinca Simas, que junto a Diogo, faz do livro uma louvação à cultura do Rio, forjada nas ruas do subúrbio da Leopoldina, onde havia expressões culturais como o banho de mar à fantasia na Praia de Ramos, e vários cinemas. “Hoje você tem uma cidade amedrontada, a rua está sob ataque: da violência urbana, do poder disciplinador da ordem pública, do mercado que a vê mercantilizada, a ideia de cidade-empresa”, define o historiador.

Mas a poesia de Luiz Carlos e seu amor pelos encontros foi capaz de fazer das ruas do subúrbio palco para sua música e para a gastronomia, outra paixão. Ao lado da mulher e grande companheira de vida - “a Jane também gosta de um furdunço”, brincam os autores - realizou o Caldos e Canjas, a partir de 2005, um “regabofe” em seu aniversário para nada menos do que duas mil pessoas na quadra do Cacique de Ramos. Ex-rainha de bateria da escola de samba Tupy de Brás de Pina, Jane teve com Luiz uma filha, Maiana Baptista, e assinou com seu amor a canção “Samba que nem Rita adora”.

Conta, à época, o poeta: “A ideia do Caldos e Canjas era da Jane, minha mulher, e demorou anos para sair do papel. Até que no meu aniversário, em 2005, ela resolveu fazer uma comemoração aqui em casa. Quando tomei pé do negócio, ela já tinha convidado mais de mil pessoas”. O diálogo se deu mais ou menos assim. Como vai caber todo mundo aqui dentro? Ela disse: ‘Aqui, não. A gente fecha a rua’. ‘Como assim? E porque é meu aniversário, a gente fecha a rua?’. Felizmente, a festança foi no Cacique.

Quem diria que o compositor de tantas grandes celebrações era um menino tímido, que ficou desaparecido dois ou três dias após ser reprovado pela buzina do Cassino do Chacrinha. O calouro Luiz Carlos mobilizou toda a Vila da Penha após a reprovação no programa de televisão do Velho Guerreiro, mas conta o livro que uma entidade de umbanda que a avó materna incorporava garantiu: “Se ele não aparecer hoje, não volto mais à Terra”. Reza a mística familiar que o garoto foi localizado no mesmo dia, nos arredores de uma escola municipal.

 

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Luiz Antonio Simas e Diogo Cunha se debruçaram sobre a vida do sambista (Foto: José Peres)

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Grandes encontros

A obra também rememora encontros importantes para a formação do artista, como Carlão Elegante, sambista e ator que fez sucesso na década de 1970, o encontro com a geração de compositores do Cacique de Ramos e sua “madrinha”, Beth Carvalho, a paixão de Luiz Carlos pelo futebol, que chegou a treinar no juvenil do Flamengo, pelas escolas de samba e pelo carnaval.

O desfile campeão de 1988 pela Vila Isabel é descrito como um épico. Se o Brasil se emocionou ao ver a escola percorrer a Avenida com os integrantes da Comissão de Frente com os pés sangrando foi por um erro da escola: os sapatos não chegaram.

A presidência chegou à conclusão de que guerreiros africanos não usavam mesmo sandálias e o acessório foi improvisado com tiras de couro. A Ala das Mumuílas do Morro dos Macacos, que desfilaram com colares confeccionados pelas próprias integrantes sobre os seios nus, após muita resistência das mulheres da comunidade, parecia tão legítima que o público se sentia diante das próprias lutadoras da tribo de Angola.

O samba antológico de Luiz Carlos da Vila com Rodolpho e Jonas, dupla de amigos que trabalhavam no jogo do bicho com quem o sambista não tinha muito contato, foi feito em meia hora.

Quem recrutou o poeta para a missão foi Martinho da Vila, mas Luiz Carlos estava afastado da Vila Isabel e durante mais de 30 dias não apareceu, mesmo diante dos insistentes telefonemas dos dois parceiros. Irritados, quase o tiraram do certame, mas, na véspera de entregar a composição, o sambista pegou um táxi, foi à casa de Rodolpho e avisou ao taxista: “Fica parado, me esperando, que eu vou fazer um samba e já volto”. E pensou com seus botões: “hoje o samba vai”, contam os autores. Em uma metade de hora estava pronto um dos maiores clássicos do samba carioca.

“O Kizomba foi uma zebra. A Vila é o Olodum das escolas de samba: Olodum tá rico, Olodum tá pobre. Em 1988, ensaiava na 28 de setembro porque não tinha sede. Era uma situação precária, mas eles usaram a sabedoria da escassez e construíram aquele desfile nessas condições”, resume Simas, que fez, ao lado de Diogo, do livro uma grande festa da escola de samba, do Cacique de Ramos, do Bafo da Onça, todos espaços sagrados da história do Rio percorridos por Luiz:

“Da última vez que o vi, ele fez a roda de samba e me chamou para ficar perto dele. Ele tinha aquele jeito, disse que era meu fã, eu falei que eu que era fã dele. Eu dei um beijo nele e o acompanhei até o táxi. Ele me falou que estava com a hérnia de disco e tinha se recuperado. Foi a última vez que o vi. O cara não era triste, isso a gente não tinha o direito de fazer”, finaliza Diogo, numa homenagem emocionada e feliz ao amigo.

Reprodução - Obra sobre o compositor da Vila da Penha e da Vila Isabel será lançada hoje, na Folha Seca, e traz fotos do acervo pessoal, como a dele fantasiado de índio, no colo da mãe
José Peres - Luiz Antonio Simas e Diogo Cunha se debruçaram sobre a vida do sambista