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Ganhador do Oscar, Del Toro fala em Marrakech sobre a adaptação de Pinóquio, na Itália fascista

Rodrigo Fonseca -
Del Toro
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Mentir é o verbo mais recorrente, ainda que dissimulado, em sociedades intolerantes como a dos Estados Unidos da Era Trump, o que torna um ícone das “meias verdades”, como Pinóquio, um personagem indispensável para traduzir o estado de coisas e nossos tempos: é o que diz Guillermo Del Toro. É ele, hoje com 54 anos, quem vai devolver o boneco de madeira, personificado como menino do nariz grande, às telas, na forma de uma animação com bonecos, em stop-motion (técnica na qual objetos são filmados quadro a quadro, dando sensação de movimento), ambientada na Itália fascista. O personagem, celebrizado pela Disney em um desenho animado dos anos 1940, nasceu da pena do escritor florentino Carlo Collodi (1826-1890) em 1883. É hora de o brinquedo que o sonha ser gente voltar a seu país de berço, como um projeto da grife Netflix, feito pelas lentes de um mexicano expert em monstros que arrebatou corações, ganhou o Leão de Ouro de Veneza e conquistou dois Oscars (o de melhor direção e o de melhor filme) pelo tritão amazônico de “A forma da água”. O prestígio de crítica e público do filme (cuja bilheteria beirou US$ 195 milhões) deu a Del Toro uma vaga entre os maiores realizadores da atualidade. Entre agosto e setembro, ele presidiu o júri do Festival de Veneza (coroando seu conterrâneo Alfonso Cuarón, por “Roma”, com o Leão dourado). Agora, há uma semana, foi visitar um dos mais prestigiados eventos cinéfilos da África, o Festival de Marrakech, encerrado sábado com a vitória do longa austríaco “Joy”, da diretora Sudabeh Mortezai, na briga pela Estrela de Ouro. Del Toro foi lá ministrar uma masterclass sobre sua carreira, hoje no apogeu. Neste papo com o JORNAL DO BRASIL, o oscarizado realizador de cults como “O labirinto do Fauno” (2006) e “Hellboy” (2004) revela os temperos do México em sua estética, fala sobre Pinóquio e faz uma reflexão política sobre processos de criação nesta era de canais de streaming.

Macaque in the trees
Del Toro (Foto: Rodrigo Fonseca)

Onde é que o projeto “Pinóquio” se encaixa na sua obra?

GUILLERMO DEL TORO – Vou levar a história do boneco de madeira que precisa se humanizar para poder ser amado para o contexto do fascismo italiano, para a Itália de Mussolini. Será uma fábula política pois precisamos mais do que nunca de metáforas. É por meio de parábolas que as religiões se edificam. E, neste momento em que a Humanidade vive numa guerra de ficções, a partir das fake news que são inventadas nas redes sociais, produzindo uma lógica onde tudo ou é preto ou é branco, uma parábola humanista pode trazer outros tons de cor. Pinóquio sempre me fascinou por encarnar a imperfeição, não apenas no ato de mentir, mas por ser uma espécie de Frankenstein de pau, um monstro típico daqueles que eu adoro.

O que o monstro de “A forma da água” mudou na sua vida?

Curiosamente, o que deveria ser a maior alegria da minha vida chegou junto de uma perda afetiva sem precedentes na minha história pessoal: poucos meses após o Oscar que recebi, eu perdi meu pai, Federico Del Toro. A morte de alguém essencial à sua existência traz uma perspectiva diferente às suas vitórias. Eu sai daquela premiação cheio de amor: vi muita gente comemorando a consagração do meu filme, do meu trabalho. E aí veio a morte dele, do homem que me deu disciplina. Mas eu saí dessa experiência buscando minha essência. Eu fiz muita coisa no cinema, desde efeito especial até assistência de direção, passando pelo cargo de assistente de direção. Mas a animação sempre fez parte da minha trajetória. É hora de voltar a ela com a uma história como a de Pinóquio com a qual eu tenho uma conexão desde a infância. É o menino que não pode ser ele mesmo para ganhar o amor dos outros.

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Pinóquio será filmado sob a forma de uma fábula política por Guillermo Del Toro (Foto: Reprodução)

Podemos esperar referências à animação japonesa em “Pinóquio”, na linha daquelas que você usou em “Círculo de fogo”?

Gosto muito da arte japonesa de bonecos, o bunraku, assim como gosto da tradição das máscaras, que vem desde a cultura grega. Mas há uma influência grande da japanimation em mim. Cresci numa época em que o desenho “Astro Boy”, de Osamu Tezuka, passava na TV. A inocência do desenho “Doraremon” também sempre me encantou entre as animações japonesas, pela presença de monstros, por um heroísmo mecanicista.

“Pinóquio” sai pelo selo Netflix, que anda viabilizando projetos de mestres como Scorsese e deu a um conterrâneo seu, o mexicano Alfonso Cuarón, meios de viabilizar “Roma”. O que representa filmar para um serviço de streaming?

O que pode existir de mais assustador na vida de um cineasta não é ter de adaptar sua linguagem a um novo meio é o impedimento, o impasse de não poder trabalhar por falta de meios. Eu levei esse projeto para todos os estúdios e ninguém quis. A Netflix sinalizou que queria. Logo, farei com ela. Vive-se hoje uma transformação inevitável na paisagem do meio audiovisual, que passa pela ascensão dos serviços de streaming. Eles estão mudando lógicas de produção, mas não vão acabar com o cinema, ao contrário do que muitos temem. Houve esse medo quando o cinema silencioso descobriu o som... quando a cor chegou... quando a TV foi às casas das pessoas... quando as locadoras de VHS surgiram... quando o DVD apareceu. Há um medo contínuo e histórico, mas que nunca se materializou. Nem vai. O medo que mais conta no meio artístico é a ausência de liberdade.

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Del Toro dirige Sally Hawkins e Doug Jones, que encarnou o tritão no oscarizado "Shape of water" (Foto: Divulgação)

Houve algum caso de falta de liberdade em sua carreira? Como é deixar outros diretores criarem livremente em seu trabalho como produtor?

Um dos meus primeiros trabalhos nos EUA, como cineasta, “Mutação”, feito em 1997 para os Weinstein, tive problemas. Mas aí eu fui fazer “A espinha do Diabo”, que tinha o diretor espanhol Pedro Almodóvar como produtor. Um dia, perguntei pra ele quem faria o corte final de “A espinha...” e ele riu: ‘Ué, você é o diretor, o corte final precisa ser seu. Eu só dou ideias, mas a montagem definitiva precisa ser sua’. Quase chorei ao ouvir aquilo, por ser algo bem diferente do que vivi nos Estados Unidos, inicialmente. Pedro me produzia colocando uma série de ideias na mesa, mas sem impor nada. Ele me dava sempre o direito de escolher só aquelas sugestões que eu quisesse, por acreditar esteticamente na força delas para o bem do filme. Pedro dizia: ‘Minhas ideias são estas, o filme é teu, você decide”. Filmar é algo que pode satisfazer sua curiosidade. Produzir é elencar aquilo que te dá curiosidade, mas que deve ser confiado a outro que saiba dirigi-lo melhor do que você dirigiria. A questão é escolher bem o cineasta a quem você vai empoderar. É como escolher elenco. Escrevi “A forma da água” já com a Sally Hawkins na cabeça. Só poderia ser ela. E foi, o filme é nosso.

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O tritão amazônico capturado pelas Forças Armadas dos EUA, de "A forma da água" (Foto: Divulgação)

Alguma hipótese de vermos um filme de super-herói padrão Marvel ou DC dirigido por você?

Acabei de escrever algo para a DC: a Liga da Justiça Dark (uma versão sobrenatural do grupo formado por Super-Homem, Mulher-Maravilha & CIA. só com figuras atormentadas com conexões com o Além, como o bruxo John Constantine, a feiticeira Zatanna e o Monstro do Pântano). Topei esse projeto porque eles são monstros, criaturas assombradas. Gente fina, do tipo bonzinho não me interessa. Cresci cercado de fábulas em que pessoas difíceis, de perfil torto, saem em uma jornada de autodescoberta. Mais ou menos como se dá com Pinóquio, que eu vou filmar. São essas figuras que me interessam: pessoas que precisam se tornar boas para serem amadas.

Como é que você explica o boom de diretores mexicanos em premiações como o Oscar: teve Alejandro González Iñárritu, você e Cuarón, que foi premiado pela Academia de Hollywood por “Gravidade” e pode concorrer de novo com “Roma”?

Há mais de uma década, li um verbete sobre o Cuarón escrito pelo crítico David Denby em que ele dizia: “Alfonso é um cineasta mexicano consagrado por ‘E sua mãe também’ que vai filmar um longa da franquia ‘Harry Potter’. Se ele se sair bem nessa, nunca mais filmará à mexicana, pois será tragado pela indústria”. O tempo passou, Alfonso ganhou o Oscar pela direção de “Gravidade”, foi cercado por milhões dólares por todos os lados e, apesar deles, foi ao México filmar uma trama intimista, sobre uma empregada doméstica ameríndia, baseado em sua própria história com sua babá. “Roma” está aí, lindo. Ele, Alejandro e eu somos de uma geração de realizadores que teve de trabalhar em múltiplas funções no cinema, até fora de casa, para que pudéssemos fazer nossos filmes. Alfonso fez projetos de encomenda para Hollywood, Alejandro dirigiu publicidade e eu fiz de tudo: maquiei, fui assistente, criei efeitos especiais. Fiz isso para que conseguisse dirigir. Cada vez que um de nós conseguia dirigir algo no México, vivíamos uma sensação de “esta será a última vez”. Mas seguimos em frente

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As criaturas sobrenaturais de Liga da Justiça Dark (Foto: Reprodução)

Como é que a atual situação política na fronteira do México com os EUA impacta a sua percepção de mundo, como mexicano residente nos EUA?

O incômodo é enorme. Essa questão de ver crianças enjauladas, nessa política de repressão, é muito desumana, é algo doloroso para o mundo. O problema no jogo do Poder é que existe uma prática de se culpabilizar o estrangeiro ao tratá-lo como invasor. Essa é uma estratégia antiga e excludente contra os mexicanos.

*Roteirista e crítico de cinema

Reprodução - Pinóquio será filmado sob a forma de uma fábula política por Guillermo Del Toro
Divulgação - Del Toro dirige Sally Hawkins e Doug Jones, que encarnou o tritão no oscarizado "Shape of water"
Divulgação - O tritão amazônico capturado pelas Forças Armadas dos EUA, de "A forma da água"
Reprodução - As criaturas sobrenaturais de Liga da Justiça Dark