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Noca da Portela completa 86 anos e ganha biografia que mostra sua trajetória vitoriosa na música e na vida

Divulgação -
Noca da Portela
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O nome artístico diz que é da Portela, mas ele é do Tuiuti, do Cacique de Ramos, do Barbas, do Simpatia é Quase Amor… Osvaldo Alves Pereira, o Noca, completa hoje 86 anos de uma vida que, literalmente, deu muito samba. No rastro das comemorações a mais um ano de vida deste grande compositor, o Departamento de Cultura Popular (Decult) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) lança “Noca da Portela e de todos os sambas”, uma biografia do compositor de mais de 450 canções gravadas por destacados nomes da música brasileira. E o teatro da universidade terá a sua noite de terreiro, pois bambas de todas as matizes da aquarela do samba vão bater ponto na homenagem: Nelson Sargento, Monarco, Bira do Cacique, Toninho Geraes e Paulinho da Viola são alguns dos nomes confirmados no show-tributo.

Macaque in the trees
Noca da Portela (Foto: Divulgação)

De autoria de Marcelo Braz, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a biografia destaca a trajetória vitoriosa do mineiro que chegou pequeno ao Rio e passou por inúmeros percalços antes de vencer na vida com sua música, tornar-se o primeiro sambista a ser secretário estadual de Cultura e até receber a Comenda da Ordem do Rio Branco, a maior condecoração concedida pelo Itamaraty. Depois de viver em cabeças de porco ou barracos de zinco – perdeu tudo nas enchentes de 1966 que devastaram sua casa no Tuiuti e muitos outros por toda a cidade -, trabalhou duro como feirante e soube conciliar suas responsabilidades como marido e pai com a típica boemia no meio do samba.

“Como marido da Dona Conceição, pai do Gilmar, da Solange, da Rosângela e da Rosemary, avô e bisavô, seu Osvaldo se virou a ponto de conseguir a proeza de ser um bamba boêmio, como praticamente todos os sambistas, mas zeloso com a família como poucos”, afirma o autor, que contextualiza a trajetória de vida do compositor a partir de seu engajamento político e social. 

Filho de um militante comunista, Noca da Portela herdou apenas duas coisas do pai: um violão e um quadro com a foice e o martelo. “Meu pai trabalhava na Lloyd, passava muito tempo longe de casa, mas tocava e compunha alguns sambas. Mas nunca quis que eu seguisse por esse caminho. Ele sabia que não tinha jeito e me tornei seu herdeiro na música e militância”, conta Noca. No leito de morte, seu Ernesto Domingos de Araújo também foi presenteado pelo filho. Noca cantou-lhe um samba declarando amor ao Flamengo. Um pequeno gesto de carinho do filho tricolor, que nunca seguiu o conselho do pai para ser rubro-negro. “É uma coisa que fiz só pra ele, nunca gravei. Mas depois vi que na mesma métrica em que escrevi Flamengo, com três sílabas, cabia tricolor, sem qualquer prejuízo à melodia”, diverte-se.

Macaque in the trees
Biografia (Foto: Divulgação)

E se viver exclusivamente de música era praticamente impossível para artistas de origem humilde, Noca teve de dar o seu jeito. O primeiro contato com os batuques veio quando viveu no Catete, bairro que concentrou vários blocos e escolas de samba, entre as quais a Irmãos do Catete, onde sua sensibilidade começou a ser notada. Anos mais tarde, vivendo numa cabeça de porco na Praia de Botafogo, conheceu os compositores Mauro Duarte, Walter Alfaiate, Delcio Carvalho e César Farias, pai de Paulinho da Viola. “Então ali eu comecei a me descobrir como compositor. Formamos o bloco Foliões de Botafogo. Muita gente boa”, recorda o poeta. São dessa época versos como “Cabeça de porco / Geralmente é um sobrado / Que abrigava no passado / Gente da aristocracia / Mas hoje em dia / Totalmente alugado / Serve pro infortunado / Não ficar sem moradia”.

De morro a morro

De Botafogo, viveu no Morro Azul do Flamengo, antes de se mudar para o Morro do Tuiuti, em São Cristóvão. Atraído pelo custo mais baixo da moradia e por ter sabido que a turma de lá era chegada ao samba também. Nesta favela passou muito sufoco por morar na parte alta, onde a água não chegava, mas conheceu a mulher que seria seu esteio por 60 anos, a Dona Conceição, que desfilava no bloco local. Noca não chegou a fundar a Paraíso do Tuiuti, criada um ano antes de sua mudança para lá, mas logo ingressou na escola e em sua ala de compositores, emplacando vários sambas-enredo para a escola. Sua relação com a agremiação é tão profunda que o velho sambista acaba de gravar um CD em sua homenagem. “São seis composições minhas e o resto de grandes sambistas da escola, todos já mortos”, comenta.

A ida para a Portela se deu em 1966 pelas mãos de Paulinho da Viola, que também era ligado ao PCB. “Na Portela era diferente. Precisava de um estágio de dois anos antes de poder apresentar sambas nas disputas de samba-enredo. Então, só pude participar dos concursos em 1968”, diverte-se.

A primeira música gravada é de 1954, mas a história é nebulosa para Noca. “Eu tinha uma marchinha chamada ‘Marlene meu bem’, uma homenagem à cantora de quem era fã. Só sei dizer que cantei essa música para um cara e ele disse ‘Vou gravar essa música para você’. Respondi que, então, ele seria o meu parceiro. O cara só fazia compacto simples. Gravou e assinou meu nome junto com o dele, mas nunca vi nenhum tostão. O nome dele só fui descobrir há dois anos: Joaquim Luchesi Sobrinho”, revela.

Mas com outras canções não foi assim. A partir dos anos 1960, passou a ser gravado por Maria Bethânia, Seu Jorge, Beth Carvalho, Paulino da Viola, Martinho da Vila, Dudu Nobre e Zeca Pagodinho, entre outros. Seu maior sucesso, “É preciso muito amor”, tem várias regravações. O compositor conta que ela nasceu quando ele e um amigo estavam num bar em Guadalupe após um batizado do filho de um amigo. “Tinha um sujeito lá que já estava calibrado de bebida. De repente, me chega uma preta robusta e pergunta se o peixe que ele foi comprar ia chegar frito ou ensopado. Ela deu uma dura nele e exigiu que ele fosse pra casa em seguida. O malandro foi saindo de mansinho, mas depois que a preta passou pela porta, ele bateu no peito e falou pra todo bar ouvir ‘É preciso muito amor para aguentar essa mala’. Começamos a batucar e mexer na frase até virar ‘É preciso muito amor para suportar essa mulher’ e o resto foi chegando porque a gente ia lembrando de outras mulheres”, explica. “O bom samba tem que ser verdadeiro, tem que ter uma história por trás. Ouvi isso do Geraldo Pereira lá na Lapa”, acrescenta.

Outro grande sucesso de Noca foi “Virada”, parceria com o filho Gilmar – o Noquinha -, e gravada por Beth Carvalho que virou um dos hinos da luta pela democratização durante a campanha das Diretas Já. “O que adianta eu trabalhar demais / se o que eu ganho é pouco / se cada dia eu vou mais pra trás, / nessa vida levando soco, / e quem tem muito tá querendo mais, / e quem não tem tá no sufoco, / vamos lá rapaziada, tá na hora da virada / vamos dar o troco”, dizem os primeiros versos. “Fiz esse samba quando os sindicatos estavam ganhando força, falava ali do drama do trabalhador. A Beth ouviu, disse que queria gravar e que ela faria sucesso”, lembra o compositor.

Com o bom dinheiro que ganhou com “Virada”, deu o troco em sua vida e comprou a casa no Engenho de Dentro onde vive até hoje com filhos, netos e bisnetos – Dona Conceição partiu em 2013. “Eu venci. Como imaginar que um menino pobre que chegou de Minas, trabalhou na feira, viveu em favelas, passou por tanto sufoco, viria a ser secretário de Cultura, que receberia uma comenda do presidente da República (condecoração dada em 2006 pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva)?, porém minhas maiores alegrias vieram do samba. Eu não vivi do samba, vivi para o samba. Na sexta passada, meu neto (o cavaquinista Diogão) me levou para uma roda no Rio Comprido. Tinha uma garotada universitária que queria me conhecer. Era pra ficar lá uns vinte minutos; fiquei duas horas e meia. Tudo meu que foi cantado eles acompanhavam. É isso que realiza a gente, ser reconhecido pelo povo. Sou um artista popular, um cronista da minha gente”, gaba-se.

Do alto dos 86 anos e com uma lucidez e vitalidade que impressionam, Noca da Portela, do Tuiuti e de tantos sambas talvez seja um caso raro de compositor que assina parcerias com o neto. Se bobear, vai fazer samba com bisnetos. “O meu mais velho tem 12 anos e fica me olhando de lado dizendo que vai fazer um samba comigo. Já disse a ele que só tem 12 anos, que está cedo, e o moleque devolveu que eu fazia samba com 14 anos. É… acho quem vem mais uma parceria aí”, avisa com uma sonora gargalhada.