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Era uma vez na Itália

Morte de Bernardo Bertolucci encerra fase dos grandes cineastas italianos

Divulgação -
Anna Magnani em "Roma, Cidade Aberta"
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O cinema italiano, que proporcionou alguns dos momentos mais mágicos das telas do mundo, foi recentemente desfalcado de mais um nome expressivo de sua cinematografia com a morte de Bernardo Bertolucci no último dia 26, aos 77 anos. O consagrado diretor ficou mundialmente conhecido em 1972, quando realizou “O último tango em Paris”, um filme que entrou para a história do cinema, mas que, na época, foi censurado e proibido em muitos países, inclusive no Brasil.

Nascido em Parma em 16 de março de 1941 e filho do poeta Attilio Bertolucci, ele mesmo foi um poeta aos 12 anos, mas logo apaixonou-se pelo cinema. Fez muitos filmes amadores e estreou nas telas como assistente de Pasolini em “Accatone”. Em 1962, dirigiu seu primeiro filme, “La Commare Secca”, e logo a seguir “Prima della Rivoluzione”.

Entre outros, sua profícua cinematografia inclui “Novecento” (1976), “La luna” (1979), “O último imperador”(1987), o reflexivo “O céu que nos protege” (1990), “O Pequeno Buda” (1993), “Assédio” (1998) e “Os sonhadores” (2003), que tem como pano de fundo as revoltas estudantis de 1968 nas ruas de Paris.

O tamanho da perda

Bertolucci deixa uma obra extremamente pessoal, na qual procura dividir com os espectadores suas dúvidas intelectuais, filosóficas e psicológicas. Sua morte, além de aumentar a lista dos que já se foram, dá o tamanho da perda: Zavatini (para muitos, o cérebro criador do neorrealismo) Visconti, Rossellini, Fellini, Massina, Scola, Mastroianni, Gassman, De Sordi, Tognazzi, Fabrizi, Mangano, De Sica, Volonté, Leone, Magnani, Cervi , Manfredi, Risi, Rota...

Só para lembrar alguns dos expoentes desse cinema, em 1974 morreu Vittorio De Sica, diretor do genial “Ladrões de bicicleta” (1948) e dos clássicos “Milagre em Milão” (1951), “Umberto D.” (1952), “Matrimônio à italiana” (1964) e “O Jardim dos Finzi-Contini” (1970).

Em 1977, perdemos Roberto Rosselini que, com “Roma, Cidade Aberta” (1945) marcou o início do Neorrealismo, movimento que revolucionou o cinema mundial. Embora alguns historiadores e críticos identifiquem em “Obsessão”, de Visconti, o DNA inicial da estética neorrealista, o paradigma das ideais e ideais desse movimento é de fato “Roma, Cidade Aberta”.

Drama poderoso, sóbrio, filmado com uma técnica não convencional, o filme de Rossellini trouxe aos olhos dos espectadores uma linguagem cinematográfica nova, original e totalmente despida de preciosismos estéticos. Ao mesmo tempo, cru e dono de uma força impactante, o filme levou críticos e público à certeza de que algo de novo surgia no mundo cinematográfico.

Se nada mais tivesse realizado, dirigir esse filme já seria um enorme legado. Mas o grande cineasta ainda nos deixou, numa carreira que inclui 52 trabalhos, joias como “Paisá” (1946), “Alemanha, Ano Zero” (1948), “ Stromboli” (1950), “Viva a Itália” (1961) e “Anno Uno” (1974).

Em 1990, morreram em sequência Aldo Fabrizi e Ugo Tognazzi. Entre muitos personagens, Fabrizi nos legou o valente padre antifascista Don Pietro de “Roma, Cidade Aberta”. Mas foi em “Gaiola das Loucas” (1978), de Edouard Molinaro, que Tognazzi, liberou todo seu talento interpretando Renato Baldi, com sua persona múltipla para esconder da família o fato de ser gay e dono de um clube de travestis.

Obras antológicas

Outra enorme perda foi Luchino Visconti, que entre tantos filmes maravilhosos, nos deixou a obra-prima “O Leopardo” (Il Gattopardo, 1963), baseado no livro de Giuseppe Lampedusa. Nela, Visconti personifica – através do príncipe siciliano Salina, interpretado por Burt Lancaster – a si próprio, um aristocrata lombardo, homem preso às suas origens, mas ideologicamente convencido a derrotá-las.

Como deixar de falar de Marcello Mastroianni, um dos atores mais queridos da Itália e também do cinema mundial? Em 1958, Mario Monicelli o escalou no papel de Tibério, um dos “Eternos desconhecidos”. Mas foi o genial Federico Fellini, contudo, que lhe deu o grande empurrão em 1960 com “A doce vida”, quando, no papel do jornalista Marcello Rubini, se transformou em ídolo instantâneo. No mesmo ano e logo depois, Marcello fez outro filme de enorme sucesso, “O Belo Antonio”, de Mauro Bolognini.

De Monicelli, que morreu em Roma, aos 95 anos, jamais esqueceremos filmes como o cultuado “Os companheiros”, de 1963, que marcou época e confirmou um outro dote especial do cineasta: a sua sensibilidade na escolha dos atores certos para os personagens certos. O professor Sinigaglia, interpretado por Mastroianni, ficou para sempre na mente de cinéfilos do mundo inteiro.

A propósito, numa coletiva de que participamos em Viareggio, quando lhe foi perguntado sobre métodos adotados para as filmagens de “Os companheiros”, Monicelli reclamou, antes de responder: “Vocês assistiram ao filme que acabou de ser mostrado? (“Tomara que seja mulher”), gostariam de saber alguma coisa sobre ele?”, disse completando e com ar conformado: “Tudo bem, não se preocupem, já estou acostumado: em todas as entrevistas ‘Os companheiros’ e ‘Brancaleone’ são sempre centro das atenções”.

Por sinal, Vittorio Gassman, que vive, nesse filme, o impagável “Brancaleone da Nórcia” é também o protagonista de “Aquele que sabe viver”, obra-prima de outro grande cineasta italiano: Dino Risi, que morreu em Roma aos 91. Numa carreira que incluiu dezenas de filmes, esse é considerado por críticos e público seu melhor trabalho.

Risi foi um dos maiores nomes do Neorrealismo, atuando no chamado Grupo de Milão, com Luigi Comencini, Lattuada e tantos outros. A lista é grande: qual o cinéfilo que esqueceria Alberto Sordi? Sordi, que morreu em 2003 aos 83 anos, foi um dos mais prolíficos atores italianos, fez 147 filmes, começando praticamente como um extra em 1937 em “Cipião, o Africano”, dirigido por Carmine Gallone.

Foi pelas mãos de Fellini que Sordi teve a sua primeira grande oportunidade em 1952, fazendo o papel principal na comédia “Abismo de um sonho”, também estrelada pela grande Giulietta Masina, casada com o consagrado cineasta.

Ainda com Fellini, Sordi compôs um dos cinco personagens-título de “Os Boas Vidas” – I Vitelloni (1953), jovens de classe média da Romagna mais interessados em viver o momento presente do que em se preocupar com o futuro. Em 2004, foi a vez de Nino Manfredi ir se encontrar com o resto dos “compagni”. Entre muitos outros, nos deixou o terrível “Feios, sujos e malvados” (1976) e o humanístico “Nós que nos amávamos tanto”,1974).

E ainda Damiano Damiani, que morreu em 2013 com 90 anos. Após estrear com o policial, “O batom”, dirigiu filmes eróticos como “A feiticeira do amor”, faroestes como “Gringo” e intimistas como “A Ilha dos Amores Proibidos”. Damiani, no entanto, certamente será mais lembrado por sua contribuição ao cinema político italiano. Entre os títulos mais célebres estão “Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador da República” e “Só resta esquecer” sobre a polícia e o sistema penitenciário, ambos com Franco Nero.

Outra grande perda aconteceu em 2016, quando morreu Scola, aos 84 anos. Nascido em 10 de maio de 1931 em Treviso, estudou Direito em Roma e estreou no cinema em 1964, com a comédia “Fala-se de mulheres”. O diretor conviveu com a segunda geração do Neorrealismo, particularmente com Fellini que foi seu colega de jornal. Seu último trabalho “Que estranho chamar-se Federico” (2013) – homenagem e celebração da amizade entre os dois – emocionou a todos no Festival de Veneza naquele ano.

O viés humanista de seus filmes focava nos conflitos e contradições sociais, mas sempre com um olhar carinhoso para os seus personagens em obras memoráveis como: “Um dia muito especial” (1977), com os impressionantes desempenhos de Sophia Loren e Marcello Mastroianni, numa trama que inclui dramas pessoais, política, tragédias coletivas, fascismo e dilemas existenciais; “Casanova e a Revolução” (1982), de novo com Mastroianni no papel do sedutor Giacomo Casanova; “O baile” (1983), uma reflexão sobre diversos temas da época, no belo filme realizado sem diálogos, apenas com música e atores; “Concorrência desleal” (2001), denúncia sobre a competição exacerbada e sem ética. Sem deixar de mencionar o já citado e tocante “Nós que nos amávamos tanto” (1974), no qual o talentoso cineasta, através de três amigos (Gassman, Manfredi e Stefano Satta Flores), percorre 30 anos da história italiana e, no caminho, presta generosa homenagem a alguns que ele considerava seus mestres, como De Sica e Fellini.

Por último, não poderíamos encerrar essa lista sem falar no genial Sergio Leone (1929-1989). Estreou como diretor solo em 1961 com “O Colosso de Rodes”, mas o reconhecimento internacional veio com a trilogia “Por um punhado de dólares” (1964), “Por uns dólares a mais” (1965) e “Três homens em conflito” (1966), também conhecido como “O Bom, o Mau e o Feio”. Realizou ainda o explosivo “Quando explode a vingança” (1972), com um pano de fundo político e os antológicos “Era uma vez no Oeste” 1968) e “Era uma vez na América” 1984), que inspiraram o título deste texto por serem os filmes preferidos do seu autor.

Certamente não falamos de todos, seria tema para um livro. Mas o fato é que um a um, eles estão indo embora, deixando como testemunhas de sua passagem entre nós, amantes desse inesquecível cinema italiano, as suas imagens na tela, e, acima de tudo, na memória de gerações inteiras de cinéfilos que tiveram o privilégio de assistir a alguns dos momentos mais mágicos que o cinema mostrou até hoje.

Com a perda de Bertolucci, a sensação é de que nunca mais haverá uma tribo assim. No auge em que floresceram, eles nos encantavam com seus filmes e faziam com que esperássemos ansiosamente pelos que viriam a seguir.

* Jornalista e diretor do Departamento de História do Cinema e Contatos com Cinematecas da Fipreseci

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