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O método De Niro

Ator transforma palestra sobre sua vida em aula sobre interpretação, ética e repúdio a Trump

reprodução -
Al Pacino e Robert De Niro voltam a atuar juntos no novo filme do mestre Scorsese, "The Irishman"
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Criado em 2001 com o intuito de ampliar a importância estética do Marrocos e do continente africano como um todo no planisfério cinematográfico, o Festival de Marrakech, hoje em sua 17ª edição, sediou ontem uma aula informal sobre arte dramática, tendo como professor o mito Robert Anthony De Niro. Preparando-se para voltar às telas à frente do novo filme de seu bom companheiro Martin Scorsese, “The Irishman”, um thriller sobre a máfia da grife Netflix (com circulação por cinemas já assegurada), De Niro foi homenageado pelo evento marroquino no sábado, mas estendeu sua presença na cidade para uma palestra sobre sua carreira. A mediação ficou por conta da cineasta e atriz francesa Maïween, a quem o astro de “Taxi driver” (1976) conferiu o prêmio especial do júri de Cannes, em 2011, pelo longa-metragem “Políssia”, quando presidiu o júri da Palma de Ouro. No palco de Marrakech, o que se propôs a ser um jogo de perguntas e respostas sobre vida e obra virou um estudo sobre o que significa ser um ator, em Hollywood e em qualquer canto do planeta.

Macaque in the trees
Al Pacino e Robert De Niro voltam a atuar juntos no novo filme do mestre Scorsese, "The Irishman" (Foto: reprodução)

“Muitas vezes, um ator recebe um convite para filmes que ele, de cara, percebe não ter muito potencial de qualidade. Mas é trabalho. Há contas a serem pagas. E mesmo sem elas, é preciso ter compromisso ético com o que vai para tela, pois o espectador percebe o que é genuíno. A direção pode ser ruim, a trama fraca, a fotografia equivocada... mas nada disso é desculpa pra que se atue mal. O público pode reconhecer, num filme ruim, um grande trabalho. Basta você se empenhar, empregar sua verdade. Um soldado no quartel quer guerra”, ensina De Niro à plateia, sorrindo apenas de nervoso, aqui ou ali, com alguma lembrança ou diante de alguma provocação de Maïwenn.

“Gentileza é parte do que torna um diretor um bom cineasta. Jamais estive num set em que um realizador fosse grosso comigo ou com algum colega. Mas se eu visse um cineasta tratar um ator mal, acreditando que, ao desestabilizá-lo, ele possa atuar melhor, eu abordaria esse diretor, com jeitinho, e falaria: ‘as coisas não funcionam assim’. O drama deve estar escrito nas páginas do roteiro, não impresso no set”, continua.

De Niro não é do tipo de artista que conta causos sobre seu passado: é reservado, sorri pouco, carrega sempre um jornal consigo, para se atualizar das notícias de seu país e, segundo disse Scorsese a Marrakech, “entrou naquela idade em que telefona aos amigos para falar das novas dores em seu corpo”. Aos 75 anos, ele tem uma série de projetos para 2019, além de já citado “The Irishman” (estima-se que o filme possa abrir o Festival de Berlim, em 7 de fevereiro). Ele protagoniza a comédia “War with grandma”, na pele de um vovô aloprado, prevista para o primeiro trimestre do ano que vem e está no elenco do esperado “The Joker”, o filme sobre o Coringa, o inimigo do Batman, com Joaquin Phoenix no papel central. E tem a ideia de rodar um documentário sobre sua mãe, Virginia Admiral (1915-2000), uma pintora e professora.

“Tem muito diretor que faz curso de arte dramática para lidar com atores. O que eu tento fazer ao dirigir é não atrapalhar o que meu elenco”, disse De Niro, ao ver projetadas em Marrakech cenas de “Desafio no Bronx”, que ele dirigiu há 25 anos, sobre um gângster (vivido por Chazz Palminteri) que deseja apadrinhar um rapaz. “Donald Trump gostaria de ser como o personagem do Chazz nesse filme: alguém que assusta, mas tem um código de honra”.

Alfinetadas como esta têm sido comuns nas referências públicas que o ator faz ao presidente dos EUA. No dia em que recebeu de Marrakech a Estrela de Ouro Honorária, honraria em paga de seus serviços prestados à arte, ele reagiu com uma crítica ao líder americano. “Vivemos sob um populismo em sua forma mais perigosa”, atacou o ator, que deixa Marrakech hoje.

Sua passagem pelo festival aconteceu no mesmo dia em que a imprensa internacional viveu 130 minutos de uma comovente viagem pelos rincões mais racistas dos EUA de carona em “Green Book – O Guia”, longa que muitos consideram o favorito ao Oscar de melhor filme em 2019, endossado pelo prêmio do júri popular conquistado no Festival de Toronto, há cerca de três meses. De fato, ao fim da sessão, os jornalistas estrangeiros que gargalharam e choraram com Viggo Mortensen (o astro de “Capitão Fantástico”) - na pele de um brucutu às voltas com o exorcismo de seu preconceito racial – concordam plenamente com os argumentos em prol de sua vitória na cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Pilotado por um cineasta com mestrado em humor pastelão, Peter Farrely, codiretor (com seu irmão Bobby) de “Quem vai ficar com Mary” (1997) e “Debi & Lóide – Dois idiotas em apuros” (1994), este road movie de tintas cômicas e chorosas recria uma história real: os quatro meses nos quais o leão de chácara e motorista ítalo-americano Tony Lips (Viggo, em sublime atuação) trabalhou para o pianista negro Don Shirley (1927-2013), papel dado a Mahershala Ali (de “Moonlight”). Em uma narrativas de conto de fadas, digna dos clássicos de Frank Capra (“A felicidade não se compra”), Farrelly disseca o ódio institucionalizado em sua pátria, narrando a construção de uma amizade, com seus dissabores e suas alegrias. Sua sessão de gala em Marrakech, hors-concours, se realiza hoje à noite.

Sábado, o Festival de Marrakech chega ao fim, com a entrega de prêmios pelo júri chefiado pelo diretor americano James Gray (de “Z – A Cidade Perdida”), tendo 14 concorrentes no páreo pela Estrela de Ouro. Um deles, de origem argentina, tem coprodução brasileira e foi fotografado pelo pernambucano Pedro Sotero (“Aquarius”): o thriller “Vermelho sol”, a ser exibido na quinta-feira. Até o momento, “Diane” (EUA), de Kent Jones, é o favorito a láureas.

Criado em 2001 com o intuito de ampliar a importância estética do Marrocos e do continente africano como um todo no planisfério cinematográfico, o Festival de Marrakech, hoje em sua 17ª edição, sediou ontem uma aula informal sobre arte dramática, tendo como professor o mito Robert Anthony De Niro. Preparando-se para voltar às telas à frente do novo filme de seu bom companheiro Martin Scorsese, “The Irishman”, um thriller sobre a máfia da grife Netflix (com circulação por cinemas já assegurada), De Niro foi homenageado pelo evento marroquino no sábado, mas estendeu sua presença na cidade para uma palestra sobre sua carreira. A mediação ficou por conta da cineasta e atriz francesa Maïween, a quem o astro de “Taxi driver” (1976) conferiu o prêmio especial do júri de Cannes, em 2011, pelo longa-metragem “Políssia”, quando presidiu o júri da Palma de Ouro. No palco de Marrakech, o que se propôs a ser um jogo de perguntas e respostas sobre vida e obra virou um estudo sobre o que significa ser um ator, em Hollywood e em qualquer canto do planeta.

“Muitas vezes, um ator recebe um convite para filmes que ele, de cara, percebe não ter muito potencial de qualidade. Mas é trabalho. Há contas a serem pagas. E mesmo sem elas, é preciso ter compromisso ético com o que vai para tela, pois o espectador percebe o que é genuíno. A direção pode ser ruim, a trama fraca, a fotografia equivocada... mas nada disso é desculpa pra que se atue mal. O público pode reconhecer, num filme ruim, um grande trabalho. Basta você se empenhar, empregar sua verdade. Um soldado no quartel quer guerra”, ensina De Niro à plateia, sorrindo apenas de nervoso, aqui ou ali, com alguma lembrança ou diante de alguma provocação de Maïwenn.

“Gentileza é parte do que torna um diretor um bom cineasta. Jamais estive num set em que um realizador fosse grosso comigo ou com algum colega. Mas se eu visse um cineasta tratar um ator mal, acreditando que, ao desestabilizá-lo, ele possa atuar melhor, eu abordaria esse diretor, com jeitinho, e falaria: ‘as coisas não funcionam assim’. O drama deve estar escrito nas páginas do roteiro, não impresso no set”, continua.

De Niro não é do tipo de artista que conta causos sobre seu passado: é reservado, sorri pouco, carrega sempre um jornal consigo, para se atualizar das notícias de seu país e, segundo disse Scorsese a Marrakech, “entrou naquela idade em que telefona aos amigos para falar das novas dores em seu corpo”. Aos 75 anos, ele tem uma série de projetos para 2019, além de já citado “The Irishman” (estima-se que o filme possa abrir o Festival de Berlim, em 7 de fevereiro). Ele protagoniza a comédia “War with grandma”, na pele de um vovô aloprado, prevista para o primeiro trimestre do ano que vem e está no elenco do esperado “The Joker”, o filme sobre o Coringa, o inimigo do Batman, com Joaquin Phoenix no papel central. E tem a ideia de rodar um documentário sobre sua mãe, Virginia Admiral (1915-2000), uma pintora e professora.

“Tem muito diretor que faz curso de arte dramática para lidar com atores. O que eu tento fazer ao dirigir é não atrapalhar o que meu elenco”, disse De Niro, ao ver projetadas em Marrakech cenas de “Desafio no Bronx”, que ele dirigiu há 25 anos, sobre um gângster (vivido por Chazz Palminteri) que deseja apadrinhar um rapaz. “Donald Trump gostaria de ser como o personagem do Chazz nesse filme: alguém que assusta, mas tem um código de honra”.

Alfinetadas como esta têm sido comuns nas referências públicas que o ator faz ao presidente dos EUA. No dia em que recebeu de Marrakech a Estrela de Ouro Honorária, honraria em paga de seus serviços prestados à arte, ele reagiu com uma crítica ao líder americano. “Vivemos sob um populismo em sua forma mais perigosa”, atacou o ator, que deixa Marrakech hoje.

Sua passagem pelo festival aconteceu no mesmo dia em que a imprensa internacional viveu 130 minutos de uma comovente viagem pelos rincões mais racistas dos EUA de carona em “Green Book – O Guia”, longa que muitos consideram o favorito ao Oscar de melhor filme em 2019, endossado pelo prêmio do júri popular conquistado no Festival de Toronto, há cerca de três meses. De fato, ao fim da sessão, os jornalistas estrangeiros que gargalharam e choraram com Viggo Mortensen (o astro de “Capitão Fantástico”) - na pele de um brucutu às voltas com o exorcismo de seu preconceito racial – concordam plenamente com os argumentos em prol de sua vitória na cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Pilotado por um cineasta com mestrado em humor pastelão, Peter Farrely, codiretor (com seu irmão Bobby) de “Quem vai ficar com Mary” (1997) e “Debi & Lóide – Dois idiotas em apuros” (1994), este road movie de tintas cômicas e chorosas recria uma história real: os quatro meses nos quais o leão de chácara e motorista ítalo-americano Tony Lips (Viggo, em sublime atuação) trabalhou para o pianista negro Don Shirley (1927-2013), papel dado a Mahershala Ali (de “Moonlight”). Em uma narrativas de conto de fadas, digna dos clássicos de Frank Capra (“A felicidade não se compra”), Farrelly disseca o ódio institucionalizado em sua pátria, narrando a construção de uma amizade, com seus dissabores e suas alegrias. Sua sessão de gala em Marrakech, hors-concours, se realiza hoje à noite.

Sábado, o Festival de Marrakech chega ao fim, com a entrega de prêmios pelo júri chefiado pelo diretor americano James Gray (de “Z – A Cidade Perdida”), tendo 14 concorrentes no páreo pela Estrela de Ouro. Um deles, de origem argentina, tem coprodução brasileira e foi fotografado pelo pernambucano Pedro Sotero (“Aquarius”): o thriller “Vermelho sol”, a ser exibido na quinta-feira. Até o momento, “Diane” (EUA), de Kent Jones, é o favorito a láureas.

As sensações do festival

“Her smell”, de Alex Ross Perry: No apogeu de sua fama e de seu talento, na estreia do sucesso do seriado “The handmaid’s tale”, Elisabeth Moss estrela e produz esta pesadíssima imersão no inferno psiquiátrico, a partir da jornada de autodestruição de uma cantora de rock;

“Joy”, de Sudabeh Mortezai: Austríaca de origem iraniana, a diretora de “Macondo” (2014) anda papando prêmios no mundo inteiro com esta fábula às avessas sobre a prostituição de mulheres africanas na Europa, tendo como mote a saga de uma garota de programa nigeriana obrigada a educar uma novata sobre as manhas das ruas de Viena;

“Diane”, de Kent Jones: O curador do Festival de Nova York, com experiência na direção de documentários, estreia na ficção narrando os conflitos de uma viúva septuagenária (Mary Kay Place, em sublime atuação) diante da morte de suas parentes e amigas e da conversão de seu filho viciado em fundamentalista religioso;

“Chuva é cantoria na aldeia das almas”, de Renée Nader Messora e João Salaviza: Depois de um Prêmio Especial do Júri em Cannes e do troféu Redentor de melhor direção no Festival do Rio, é a hora de este ensaio metafísico luso-brasileiro sobre ancestralidade indígena ecoar pelo Marrocos. Na tela, a partir de uma narrativa lúdica, que dialoga com a ritualística dos Krahô, um jovem às voltas com o luto redesenha seu destino;

“The load”, de Ognjen Glavonic: Numa revisão crítica do legado de intolerância deixado pela guerra que atomizou a Iugoslávia nos anos 1990, este thriller com pinta de road movie abala nervos ao narrar o périplo pelas estradas do Kosovo de um caminhoneiro responsável por uma carga de risco.

*Roteirista e crítico de cinema