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Literatura - Almanaque, uma boa sugestão para o Natal

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ALMANAQUE BRASILIDADES: UM INVENTÁRIO DO BRASIL POPULAR
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O “Almanaque Brasilidades – Um inventário do Brasil popular” (Bazar do Tempo, R$ 43,45), de autoria de Luiz Antonio Simas, é um volumezinho precioso, que poderia ser um bom presente de Natal. Escrito com argúcia, texto inteligente, informativo e bem-humorado, com ótimas ilustrações de Mateu Velasco, trata-se de uma coletânea de vidas de santos, festas profanas e sagradas, peripécias de mulheres e homens brasileiros, efemérides, lendas, mitos, histórias curiosas, pratos culinários de dar água na boca, palavras sábias de escritores, poetas e outras personalidades. Em sua totalidade, constitui um bom painel da cultura popular brasileira, apresentada de forma agradável, às vezes poética e gostosa de ser lida.

O livro está dividido em quatro partes principais: “Festas e fé”, “Gentes do Brasil”, “Guerras do Brasil”, “Mitos, encantos e assombrações”. Traz também uma introdução com considerações sobre a cultura brasileira e dicas de leitura, com indicação de livros, além de conter em sua capa um calendário de brasilidades. Nas primeiras folhas, temos uma explicação sobre a Festa de Reis ou da Epifania, aquela que é comemorada no dia 6 de janeiro e que em muitos países, sobretudo os de religião cristã ortodoxa, é mais importante do que o Natal.

Simas nos conta que a festa do Natal foi estabelecida em 25 de dezembro pelo papa Julio I em 376, marcando o encerramento do Advento (as quatro semanas que antecedem a celebração do nascimento de Jesus) e anunciando a Epifania ou manifestação de Cristo aos Reis Magos do Oriente. A tradição brasileira de Reis tem origem ibérica. No dia 6 de janeiro, grupos de foliões visitam as casas com estandartes e instrumentos musicais, como violas, pandeiros, reco-recos, sanfonas, chocalhos, cavaquinhos e triângulos. Muitas folias são compostas por palhaços e dançarinos, transformando-se em verdadeiros autos dramatúrgicos de celebração comunitária. Os palhaços não poderiam faltar, porque têm a função de distrair os soldados de Herodes, impedindo que encontrem a Sagrada Família que estava fugindo para o Egito.

O autor do Almanaque segue com as Congadas, que celebram o casamento do rei do Congo com a rainha Jinga e homenageiam também São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. A devoção por Nossa Senhora do Rosário era bem forte entre os moçambiques, tendo sido introduzida na África pelos dominicanos durante as missões de catequese no século XVI. “Reza a tradição que, em certa feita, uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar. Os negros começaram então a bater tambores e cantar pedindo proteção contra os inimigos. A imagem, trazida pelo vaivém das ondas, finalmente chegou à praia, foi resgatada pelos devotos e começou a caminhar”, narra Simas.

Depois, ele fala sobre o Círio de Nazaré, a Festa de Nossa Senhora dos Prazeres, a Festa da Penha, e aborda vidas de santos: São Gonçalo, São Longuinho, São Brás e os santos juninos, Santo Antônio, São João e São Pedro. Há muitos fatos curiosos. A festa de Nossa Senhora da Penha, por exemplo, remonta ao século XVII. Um português, Baltazar de Abreu Cardoso, que recebera uma sesmaria na Penha, em 1635 ergueu uma capela no subúrbio carioca em louvor a Nossa Senhora, agradecendo um milagre. A Virgem, ao fazer surgir em seu caminho um lagarto, o teria livrado de um ataque de cobra durante uma caçada. A atual igreja, bem diferente da original, foi erguida no final do século XIX. Dizem que tem 365 degraus, como os dias do ano, mas na realidade tem 382 degraus talhados na pedra.

Macaque in the trees
ALMANAQUE BRASILIDADES: UM INVENTÁRIO DO BRASIL POPULAR (Foto: Reprodução)

Nossa Senhora dos Prazeres surgiu em Pernambuco durante a expulsão dos holandeses. Ela surgiu milagrosamente aos guerreiros brasileiros, portugueses, indígenas, mestiços e africanos, ou seja, os nativos do Brasil, e transformou pedras em balas, protegeu as tropas e praticamente garantiu a vitória pernambucana. Agradecido ao milagre da santa, o general Francisco de Menezes mandou erguer em solo de Guararapes nos idos de 1616 uma capela à Virgem e em louvor do triunfo.

Nossa Senhora de Nazaré surgiu num igarapé em Belém do Pará em 1700. Quem a encontrou foi um caboclo chamado Plácido José de Souza. Ele montou em casa um altar para a Virgem. Mas ela sempre voltava para o igarapé Murucutu, onde por fim Plácido resolveu erguer uma ermida. Durante a festa do Círio, o povo visita o santuário, onde a imagem da santa fica exposta ao longo de 15 dias.

Ainda em “Festas e fé”, Simas menciona, sempre empregando uma narrativa leve e instigante de ser lida, o Kuarup; a Festa de Dois-Dois ou Cosme e Damião; os vários sons de ataques e tambores, que variam conforme o orixá celebrado; o afoxé ou as procissões do Carnaval, entre eles o famoso afoxé Filhos de Gandhi. E também o funk; o catimbó; a Encantaria do Maranhão; o guerreiro Ogum; Axé e a comida de orixás. No caso das comidas, ele lembra que são preparadas de forma ritualizada e que no candomblé a preparação fica a cargo de uma sacerdotisa, a Iabassê, matriarca da cozinha. Cabe a essa sacerdotisa saber as técnicas de preparo de cada comida, os alimentos certos para cada orixá e aqueles que são vetados. São vários os pratos e temperos ofertados, podendo ser citados abará, caruru, pipoca, canjica branca, axoxô (iguaria feita com milho vermelho e lascas de coco), feijoada, acaçá, omolokum (comida preparada com feijão fradinho e ovos), acarajé, farofa, inhame, dendê, cará, pimenta, camarão seco, mel, frutas diversas.

A brava gente brasileira

A parte do livro denominada “Gente do Brasil” começa com Jesuíno Brilhante, que nasceu no Rio Grande do Norte em 1844 e era um modesto agricultor. Por uma questão de terra, foi agredido pelo afilhado de um poderoso político local. Tomado pelo desejo de vingança, resolveu formar um bando, sair pelos sertões e tentar a sorte no cangaço. Paladino da causa dos miseráveis, das mulheres exploradas, das crianças agredidas e dos velhos, viveu aventuras admiráveis.

De acordo com o imaginário popular, Jesuíno tinha o corpo fechado devido a mandigas de uma velha índia. Em certa feita, cercado pela polícia na cidade de Martins, rompeu o cerco cantando um ponto de encantaria que o fez desaparecer, tendo se transformado em coruja diante dos incrédulos homens da lei. O corpo fechado e os feitiços o mantiveram vivo, porém, apenas por um curto período de tempo: aos 35 anos, foi assassinado numa emboscada da região das Águas do Riacho dos Porcos em Brejo da Cruz, na Paraíba. A eternidade aconteceria nos relatos de cordéis e desafios de violeiros.

Depois de Jesuíno, Simas conta os feitos de José Antônio do Nascimento ou Nascimento Grande. De acordo com Câmara Cascudo, “era alto de estatura, corpulento, morenão, bigodes longos, muito cortês e maneiroso, usava invariável chapelão desabado, capa de borracha dobrada no braço e a célebre bengala de 15 quilos, manejada como se pesasse 15 gramas e que chamava de a volta. Uma bengalada derrubava um homem, duas desacordavam, três matavam”. Este homem valente viveu no Recife no início do século XX. Costumava ser desafiado por mestres de capoeira, mas ninguém nunca o derrubou. Sabedor dos mistérios da ginga, diz Simas, tinha um coração do tamanho da praia da Boa Viagem. Chorava quando sabia que alguém havia maltratado uma criança. Como Jesuíno, ainda está vivo na boca do povo, “nas chulas de capoeira e nos gemidos dos urucongos”.

E lá vai Luiz Antonio Simas discorrendo com arte sobre a gente brasileira que fez história, integrada ou não ao relato oficial. Como foi o caso de Sabina das Laranjeiras; do Marechal Rondon; de Gilberto Freire; do primeiro rei Momo brasileiro, Francisco Moraes Cardoso; de Rui Barbosa; de Francisco Carregal, o negro que jogou bola; da escritora Carolina de Jesus; do artista Arthur Bispo do Rosário; de Natal da Portela, que só tinha um braço, com dois teria virado o mundo pelo avesso; Mestre Darcy do Jongo; Lia de Itamaracá; o radialista Almirante; a revolucionária Dona Bárbara e Chacrinha, que jogava bacalhau no público e criou o bordão “Terezinha”. E também cordelistas e cantadores, benzedeiras e rezadeiras, sendo que por último ele cita as mães do samba, que, como baianas, passistas, porta-bandeiras ou em suas cozinhas, com seus quitutes, animavam a festa dos músicos e compositores.

Quando o livro enfoca as “Guerras do Brasil”, em sua terceira parte, Simas observa que o país está longe de ser tão pacífico como dizem, tanto que “registram-se ao longo da trajetória brasileira quase 2 mil guerras, rebeliões, sedições e revoltas”. Fora as inúmeras sedições internas, muitas extremamente violentas e sangrentas, o Brasil também se envolveu em conflitos internacionais relevantes, como as guerras da Cisplatina e do Paraguai e as duas guerras mundiais. Há passagens horríveis, de arrepiar, com destaque para as truculências cometidas por Domingos Jorge Velho.

Além de ter dizimado os índios que participaram da Confederação dos Cariris, o bandeirante Jorge Velho, considerado um “monstro de crueldade” até mesmo por pérfidos latifundiários, deu fim ao Quilombo dos Palmares, tendo degolado Zumbi. Seus comandados puseram fogo em crianças, violentaram mulheres, furaram olhos, cortaram orelhas e enterraram gente viva. Jorge Velho, aliás, gostava de fazer colares de orelhas secas. Por onde passou, deixou um rastro de sangue na turbulenta História do Brasil.

Mas Simas também fala de guerras apenas diplomáticas ou até mesmo divertidas. Uma delas é a famosa Batalha das Toninhas, cetáceos similares aos golfinhos, que ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial. Os brasileiros acharam que as cinzentas toninhas eram perigosos submarinos. Não vou contar em detalhes a confusão. O melhor é ler o livro. Que ainda fala de “Mitos, encantos e assombrações”. E de uma obra de referência que foi uma mania entre estudiosos do Nordeste ao longo de duzentos anos, o “Lunário Perpétuo”, que ficava na mesinha de cabeceira do folclorista Câmara Cascudo.

Espécie de Google dos tempos passados, editado pela primeira vez em 1703, o “Lunário” tinha um conteúdo bem variado, que ia desde prognósticos meteorológicos até remédios estupefacientes, horóscopos, informações sobre países da Europa, mitologia, doutrina cristã, conselhos veterinários, nomes de estrelas, biografias de papas, ladainhas fúnebres, rudimentos de física e química e dicas culinárias.

As últimas linhas do “Almanaque Brasilidades” são dedicadas a uma ilha encantada, onde o irlandês São Brandão teria vivido até sua morte em 641. Esta ilha, de acordo com a mitologia celta, se chamava Hy Brasil e era movediça. Sempre se movimentava quando algum navegante dela se aproximava. São Brandão teria conseguido furar o nevoeiro e chegar até suas plagas. Ah, que vontade de que o Brasil fosse realmente uma ilha encantada e deixasse de ser um pesadelo cotidiano. É preciso acreditar em Papai Noel. E na riqueza da cultura popular, como Luiz Antonio Simas acreditou ao escrever seu brilhante livrinho, redigido certamente com muito amor e carinho pelo heroísmo e pela religiosidade sincrética do povo brasileiro e com compaixão por suas fraquezas e mazelas.

*Jornalista e escritora 

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SERVIÇO

ALMANAQUE BRASILIDADES: UM INVENTÁRIO DO BRASIL POPULAR. De Luiz Antonio Simas. ilustrador: Mateu Velasco

Ed. Bazar do Tempo, 256 págs. R$ 55