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Entrevista - Cristian Mungiu: Cinema de autor à moda romena

Onze após surpreender o mundo com 4 meses, 3 semanas e 2 dias, diretor vai ao Festival de Marrakech falar de sua obra

Divulgação -
CRISTIAN MUNGIU
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Endossado esteticamente com o prêmio de melhor direção em Cannes, há dois anos, o drama de forte crítica social ao sistema de educação europeu “Graduação” (“Bacalaureat”) nunca viu vaga em circuito brasileiro, apesar do bom desempenho que os filmes anteriores de Cristian Mungiu, seu realizador – considerado, hoje, um dos maiores cineastas do mundo -, tiveram por aqui. Ganhador da Palma de Ouro em 2007 com o aclamado “4 meses, 3 semanas e 2 dias”, o longa-metragem deflagrador da chamada Primavera Romena, tem um misto de compromisso e tributo no Marrocos esta semana: aos 50 anos, ele vai ministrar uma palestra sobre sua obra e sobre a realidade audiovisual de seu país do Festival de Marrakech, que começa sexta-feira, com a projeção de “No portal da Eternidade”, com Willem Dafoe no papel de Van Gogh. Analisando-se quem são os demais palestrantes (a nonagenária diretora belga Agnès Varda, dona de um Oscar honorário como fundadora da Nouvelle Vague; o cultuado realizador nova-iorquino Martin Scorsese; o ator, cineasta, patrono do Festival de Tribeca e eterno touro indomável Robert De Niro, percebe-se que não falta prestígio a Mungiu, hoje envolvido no projeto da série “Hackerville”.

Criada em 2007, a expressão Primavera Romena se refere a uma nova modalidade de realismo social, típica da terra de Mungiu, expressa na forma de investigações quase sempre irônicas (muitas delas de ritmo tenso) sobre falências institucionais. O procedimento básico de Mungiu e seus conterrâneos supõe usar uma estética desdramatizada (poucas ações), em locações reais, filmadas com um olhar próximo do documentário, onde as tramas são sempre mote para que se aborde a decadência política (e moral) daquela nação a partir dos escombros sociais deixados como herança pelo comunismo. E isso sempre é arejado por um humor dos mais ácidos. Desse projeto estético nasceram filmes cultuados como “Além das montanhas”, que deu a Mungiu o prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2012; “California Dreamin’”, de Cristian Nemescu, e “O tesouro” (2015), de Corneliu Porumboiu.

Na entrevista a seguir, dada ao JORNAL DO BRASIL na França, Mungiu antecipa questões que prometem polemizar seu debate em Marrakech.

Macaque in the trees
CRISTIAN MUNGIU (Foto: Divulgação)

O que representou a consagração dos seus filmes e os de seus conterrâneos, em Cannes e demais festivais, para a indústria audiovisual da Romênia?

CRISTIAN MUNGIU - Nada. Ninguém viu a vida ficar mais fácil porque foi premiado. Ganhei a Palma de Ouro e ainda suo a camisa para conseguir recursos para produzir e para filmar. E, se não fosse por um esquema de coproduções com a Bélgica e com a França, não sei se filmaria. Não existe ingerência do Estado sobre o conteúdo dos nossos filmes. A censura de conteúdo é assunto de outro tempo, que não é mais o meu. Pelo menos não agora. Mas existe censura da economia: não há dinheiro, há dificuldades sociais das diversas ordens. E existe conivência. É pra combater a postura displicente de quem é conivente que eu filmo.

Você ganhou fama mundial com um filme sobre aborto (“4 meses, 3 semanas, 2 dias”), depois fez um filme sobre a interdição à amizade entre duas mulheres, culminando com um ritual de exorcismo (“Além das montanhas”) e, por fim, seu último trabalho fala do amor desenfreado de um pai por sua filha (“Graduação”). O que existe em comum nesses longas? Qual é o teu tema central?

É o incômodo diante do fato de que alguém vai arcar com o preço da escolha egoísta do próximo. Os meus filmes todos transitam por algum registro factual real, seja com base em um caso sobre o qual eu tenha lido ou em algum problema que tenham me contado. Eu não faço documentários, portanto não sou obrigado a me prender a situações que de fato aconteceram. Eu parto delas para inventar dilemas que traduzam a inquietude moral. Mas o que me importa é mostrar consequências danosas que não podem ser contornadas. O fato que inspirou “Além das montanhas” envolvia um exorcismo de uma mulher que havia apenas tipo um surto nervoso. Nessa cerimônia religiosa, a vítima real morreu, dada toda a violência do processo. Diante de uma morte, não há o que se relativizar.

Que fronteiras estéticas o cinema romeno quebrou nesses últimos anos?

Eu só posso falar, concretamente, de um aspecto do cinema da Romênia: hoje a gente filma muito. Filma-se menos do que poderíamos. Mas é mais do que o passado nos permitiu. Posso falar por mim: eu acredito que o cinema não se limita a narrar situações. Cinema é uma experiência de linguagem. E é isso o que eu tento fazer em meus filmes. A chance de ter uma câmera na mão, com algum orçamento, impõe uma responsabilidade social ética: não posso desperdiçar essa oportunidade e não fazer algo digno, vivo.

Como é a construção narrativa de seus filmes?

A partir da percepção de que existe o indivíduo, com suas idiossincrasias, e há a sociedade, com seus vícios, com seus julgamentos morais. O indivíduo é oprimido pela sociedade. E isso rende, na minha forma de filmar, uma estrutura com múltiplas camadas. Há uma camada para questões existenciais. Há a camada da discussão política. Há a camada da experiência pessoal relativa à idade: não sou mais um jovem, não julgo as coisas como antes. Isso é dramaturgia.

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Inédito no Brasil, "Bacalaureat", de Cristian Mungiu (no detalhe), faz forte crítica ao sistema educacional da Europa e recebeu o prêmio de melhor direção em Cannes (Foto: Divulgação)

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Uma programação de peso

Em paralelo ao colóquio de Mungiu, o Festival de Marrakech, que vai até o dia 8, promove uma competição de longas-metragens, que disputam a Estrela de Ouro. A partir do dia 1º, desfilam nas telas marroquinas os concorrentes ao prêmio:“Vermelho sol” (“Rojo”), de Benjamin Naishtat (Argentina/ Brasil); “Las niñas bien”, de Alejandra Márquez Abella (México); “The load”, de Ognjen Glavonic (Sévia); “Diane”, de Kent Jones (EUA); “Red snow”, de Sayaka Kai (Japão), “Joy”, de Sudabeh Mortezai (Áustria); “Look at me”, de Nejib Belkhadi (Tunísia); “Vanishing days”, de Zhu Xin (China); “Une urgence ordinaire”, de Mohcine Besri (Marrocos); “Akasha”, de Hajooj Kuka (Sudão); “All good”, de Eva Trobish; e “La camarista”, de Lila Avilés (México).

A essa programação em concurso soma-se uma seleção de títulos de peso em mostras internacionais mas que vão para Marrakech fora da disputa oficial, como o drama americano “Vida selvagem”, de Paul Dano, e a experiência narrativa colombiana “Pássaros de Verão”, de Ciro Guerra e Cristina Gallego. O título hors-concours mais esperado é “Green book: o guia”, de Peter Farrelly, comédia dramática de tons raciais que desponta como favorita ao Oscar de 2009, ao narrar a amizade entre um segurança brucutu e preconceituoso (Viggo Mortensen) e um pianista negro (Mahershala Ali).

*Roteirista e crítico de cinema

Divulgação - Inédito no Brasil, "Bacalaureat", de Cristian Mungiu (no detalhe), faz forte crítica ao sistema educacional da Europa e recebeu o prêmio de melhor direção em Cannes