Radical, experimental, transgressor são adjetivos compartilhados nas múltiplas línguas da Europa que aclamaram os exercícios autorais do cineasta Júlio Eduardo Bressane de Azevedo desde sua estreia na direção de longas-metragens, há 51 anos, com “Cara a cara” (1967). É por isso que ele foi convidado para encerrar a edição de 2018 da Semana de Cinema, mostra com foco em exercícios de liberdade formal de linguagem audiovisual. E, na visão nada otimista que o diretor de 72 anos tem sobre o circuito exibidor carioca, hoje pode ser a única chance de seu aclamado “Sedução da carne” ser visto pelos cariocas em tela grande. A projeção é às 21h, no Estação NET Botafogo 1, antecedida pelo curta-metragem “El Meraya”, de Melissa Dullius e Rodrigo Jahn.
Lançado no Festival de Locarno, na Suíça, em agosto, onde recebeu uma ovação, o novo longa do realizador de “Matou a família e foi ao cinema” (1969) foi laureado neste fim de semana no Leffest – Lisboa e Sintra com o Grande Prêmio do Júri. Trata-se de um monólogo em que a atriz Marina Lima vive Siloé, uma escritora que compartilha suas digressões literárias e angústias existenciais com um papagaio, colocando bifes sobre sua pele a dado momento.
Ao fim da exibição de hoje, o diretor vai debater as escolhas estéticas que comenta na entrevista a seguir:
JORNAL DO BRASIL: Qual é a representação da força do feminino que reside em Siloé, sua protagonista?
JÚLIO BRESSANE: Essa personagem guarda uma experiência dupla de tempo, de um lado com a marca do passado e, do outro, com a ideia do que possa ser um futuro. E ela tem que resolver a sua existência nesse jogo entre passado e futuro. Há, na ideia de passado, uma referência de lugar onde ainda possa haver alguma esperança. Mas essa ideia de temporalidade é algo ‘inatural’, algo que pode ser passado e futuro a partir da apreensão sensível. Mas não traria a ideia de saudade nessa relação com o tempo. Confunde-se memória com saudade. Memória é um depósito de profecias.
O que o silêncio representa para um filme-monólogo, onde a palavra é onipresente?
Silêncio entra de modo intuitivo no que eu faço, mas numa lógica de trilha sonora, como um vetor que se articula com o som das palavras e da música.
Seu cinema tem um grau de aceitação altíssimo no exterior, talvez mais do que o de qualquer outro realizador nacional da sua geração, pois todos os filmes que o senhor fez nos últimos 20 anos tiveram espaço nobre nos grandes festivais do mundo. Com “A sedução da carne” não foi diferente, coroado com o Grande Prêmio do Júri no Festival de Lisboa e Sintra no último fim de semana. Quais são os próximos caminhos dele?
Esse filme tem me impressionado muito porque ele já foi convidado para nove festivais, a começar pela sessão em Locarno, na Suíça, em agosto. Vou este fim de semana para a Itália para uma projeção dele no Festival de Avelino, um evento criado em 1959 pelo (diretor Pier Paolo) Pasolini, e sigo para uma exibição na Galeria Nacional de Roma, ligada a uma exposição. Em Avelino, ele integra uma homenagem que vão fazer a mim, exibindo junto “O beduíno”, que fiz em 2016. Não há nada previsto para o lançamento no Brasil. Nem sei se terá, dado a dificuldade do circuito. Queria tentar pelo menos um lançamento na TV.
Essa dificuldade brasileira de espaço só ressalta a dimensão política de seu cinema como uma arte de resistência. Mas a consciência do termo “político” te incomoda? Se sim, como?
Resistência é uma questão de temperamento. Mas essa localização “política” é algo temerário porque ela supõe algo que faça referência ao real sem tocar no nosso mais grave problema, que é a carência educacional. A realidade é tudo: são as notícias de jornal – esse pigarro de notícias que nos bombardeia – mas é também a imaginação, o sonho, a dança, a música, a poesia. O clichê político não traduz isso, esse todo. E ele não revela que nossa cultura sofreu um derrame. O homem está destinado à mediocridade, mas se pode fugir desse destino. Nós, no Brasil, ao contrário disso, voltamos a engatinhar culturalmente.
Voltando da Itália, você cai numa adaptação de Machado de Assis. Qual seria ela?
Estou vendo se é viável. É sobre “Dom Casmurro”. Chama-se “Capitu e o capítulo”.
*Roteirista e crítico de cinema