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Maldito, graças a Deus!

Objeto de documentário elogiado na Europa, o controverso diretor, que lotou cinemas mesmo sob a patrulha da censura, volta às telas como ator em comédia

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Objeto de documentário elogiado na Europa, o controverso diretor, que lotou cinemas mesmo sob a patrulha da censura, volta às telas como ator em comédia
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Proibir é proibido no set de “Os espetaculares”, comédia sobre a arte do stand up, atualmente em filmagem no Rio de Janeiro, cujo elenco conta com a especialíssima participação de um cineasta que é sinônimo de bilheterias astronômicas, mas também de perseguição ideológica: o mineiro Neville Duarte d’Almeida. Ele atua sob a câmera atenta de um antigo aprendiz seu, André Pellenz, diretor do recém-lançado “Tudo acaba em festa”. Numa sequência filmada na última quarta-feira, na boate Blue Note, na Lagoa, o clima de descontração alimentado por Pellenz ao rodar uma trama sobre as agruras profissionais de comediantes, fez com que o veterano realizador de fenômenos de bilheteria como “A dama do lotação” (visto por 6,5 milhões de pagantes em 1978) pensasse como o cinema brasileiro teria sido se não existisse a censura. E, no caso dele, ser censurado não envolve só o patrulhamento militar - que, cinco décadas atrás, tirou de circulação o primeiro longa de Neville, “Jardins de guerra”, de 1968.

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Objeto de documentário elogiado na Europa, o controverso diretor, que lotou cinemas mesmo sob a patrulha da censura, volta às telas como ator em comédia (Foto: reprodução)

“Eu tive filme proibido; tive meu nome vetado em editais, mesmo tendo batido recordes de público; e vi festivais de cinema me rejeitarem pela ditadura do gosto. Tudo foi por conta de um cabresto ideológico ligado ao fato de eu nunca ter me rendido ao conformismo moral da correção política. Porém, mesmo censurado, chamado de maldito, rotulado de indecente, eu nunca deixei de rodar um plano. E agora estou aqui, atacando de ator, num filme que celebra a alegria”, diz Neville, cujo último longa que rodou foi “A frente fria que a chuva traz” (2016).

Há dois anos, em paralelo à estreia de “A frente fria...”, o diretor, hoje com 77 anos, contou sua vida ao crítico de cinema Mario Abbade: falou de filmes, dos ácidos que tomou e das preces que faz desde menino, educado sob o credo protestante, frequentando cultos até hoje, sabendo versículos da Bíblia de cor e salteado. Abbade reuniu os causos do provocativo diretor no documentário “Neville d’Almeida: Cronista da beleza e do caos”, lançado em janeiro, em solo estrangeiro, no Festival de Roterdã, na Holanda, sob uma chuva de elogios dos europeus.

Adotado no acervo do MoMA, Neville D’Almeida vê sua cinebiografia a ser ovacionada

“Tivemos cinco sessões em salas cheias, com gente querendo ouvir um brasileiro falar sobre liberdade. Tenho como referências dois diretores malditos: Jean Genet e Kenneth Anger. Jean fez peças explosivas e dirigiu um curta, ‘Canção de amor’, que traz a cada plano uma evocação da poesia. O outro, Kenneth, só dirigiu curtas, mas fez de ‘Scorpio rising’ uma ode ao desejo. É a essa linhagem que quero me associar.

Minha busca é pela transgressão livre. Já a busca generalizada do cinema brasileiro é por puxar o saco de quem está no poder”, diz Neville, que viu sua cinebiogra a ser ovacionada no festival “É tudo verdade”, em abril, no Rio e em SP.

Desde a passagem por Roterdã, o documentário de Abbade e o nome de Neville rodam pelo mundo, em vários festivais. O cineasta, que já havia atuado antes, várias vezes, entre 1960 e 1990, resgatou o gosto de interpretar e de ser dirigido. Daí entrar com todo gás no longa de Pellenz, no qual contracena com Rafael Portugal. Este encarna o humorista Ítalo, um dos vértices do trio de protagonistas de “Os espetaculares”: os outros dois são Ed (Paulo Mathias Jr.) e Sara (Luísa Périssé, lha de Heloísa Périssé e Lug de Paula). O enredo foi escrito com a grife de delicadeza de Sylvio Gonçalves (roteirista de blockbusters como “SOS – Mulheres ao mar”).

Nas cenas que Pellenz lma ao longo da semana, Ed, um egocêntrico profissional, empenha-se em montar um trio de comédia para poder voltar aos palcos. Daí ele se aproximar de Sara e Ítalo, cujo talento desperta a atenção de um cineasta cheio de arrogância vivido por Neville. “O papel é o oposto do que o Neville é na vida real. Quando eu comecei na carreira, trabalhei com ele na segunda versão de ‘Matou a família e foi ao cinema’. Ele ensinava pra gente, que estava ali começando, que cinema não pode ser careta”, disse Pellenz, também um campeão de bilheteria, responsável pelos sucessos “Minha mãe é uma peça” (2013) e “DPA: Detetives do Prédio Azul – O lme” (2017). “Pensei este lme pra falar que a comédia é arte, embora o gênero sofra preconceito. O personagem do Neville pensa que só dramas merecem respeito”. 

Ao chegar ao Blue Note, ajeitando seu inseparável foulard (mesmo sob o sol escaldante, ele tem sempre um lenço amarrado no pescoço), Neville dá suas falas sob um tempero de charme e ironia. Saindo dali, ele volta a seu bunker criativo, na Ilha da Gigóia, onde vive e desenvolve, simultaneamente, cinco projetos para voltar a dirigir. Destes, “A dama da internet” é o mais avançado. “Vai ser uma celebração da virada histórica que as mulheres conquistaram de a rmar seu lugar de voz sem o claustro do sexismo. Eu já tinha um olhar assim em ‘A dama do lotação’: a mulher vence a opressão. Mas aqui a questão é menos o sexo e mais a inquietação existencial ligada à força feminina”, diz o realizador. Depois do impacto comercial do cult com Sonia Braga, Neville voltou a deixar mercado exibidor de queixo caído ao regressar ao universo de Nelson Rodrigues (1912-1980) no drama “Os sete gatinhos”: arrecadou ali 1,9 milhão de ingressos vendidos, arrancando de elma Reston uma das maiores atuações do cinema brasileiro.

Na sequência, fez “Rio Babilônia” (1983), somando mais 990 mil pagantes em seu currículo de acertos. “Por anos a o, sempre que eu ligava a TV, na madrugada, tinha algum canal passando ‘Rio Babilônia’. Foi um recorde de audiência com o meu querido Joel Barcelos, um grande ator que acabou de nos deixar e que morreu sem ter o destaque merecido. É mais um assassinato cultural do Brasil”, lamenta Neville, que, nos anos 1980, circulava pela noite carioca acompanhado de um amigo que fez nos EUA, um tal de Robert De Niro, a quem ele chama só de Bob. “Na Nova York nos anos 60, z um curso de cinema em que o professor não falava de Godard, nem de Buñuel, nem de Fellini. Reclamei disso e ouvi “Here there is only one cinema: american cinema”. Ao ouvir aquilo, liguei o f... pro professor, larguei o curso e fui lmar na prática”.

Fervilham projetos na cabeça de Neville, mas eles não se limitam a lmes. A combinação de foto e desenho (com cocaína) “Cosmococas” (1973), feita por ele e Helio Oiticica (1937-1980), deram ao cineasta fama internacional na cena das artes plásticas. Vira e mexe, tem uma instalação ou um vídeo inédito dele saindo do forno, como a escultura “Rola pedra” (2009) e o experimento ainda em construção “Secretos e proibidos”.

“A maior saudade que você guarda de uma pessoa não está ligada a algo que ela fez ou disse: a saudade vem do clima que ela trazia. Faz muita falta o clima de descontração que o Helio me trazia quando a gente andava pelo Rio de Janeiro em busca de ideias para renovar a arte. Com Glauber (Rocha, mítico cineasta baiano que Neville conheceu em Nova York, nos tempos em que trabalhou e estudou nos EUA), era a mesma coisa. A gente se cruzava em Copacabana, ou onde quer que fosse, e saía pela rua falando em revolução. Mas não era pra revolucionar a Zona Sul do Rio de Janeiro não. Era pra revolucionar o mundo. Helio e Glauber pensavam em níveis mundiais. Queriam o bem do mundo, não viviam por graninha de editais, como muitos artistas fazem hoje. É isso o que mais me faz falta”, lembra Neville, que teve seu (hoje cultuado) longa “Mangue Bangue” (1971) adotado pelo acervo do MoMA em 2011.

Ser adotado pelo Museu de Arte Moderna nova-iorquino fez o cineasta rever seu histórico de batalhas. “Meus primeiros lmes eram experimentais. A ditadura os proibiu. Condenou sua circulação. Muitos se perderam. Um dia, mesmo censurado, cismei que ia fazer ‘A dama do lotação’. Procurei o Nelson Rodrigues, atrás dos direitos autorais, mesmo sem ter dinheiro pra pagar por eles, e pedi pra que ele guardasse aquela história pra mim. Meti as caras atrás do orçamento, trouxe a Sonia Braga pra história e emplaquei um sucesso. Era um lme que as pessoas viam com prazer. Provei que, acreditando, qualquer um chega lá. Eu chegue lá, mas paguei o preço: hoje negam apoio a meus projetos, excluem meus lmes de competições. Só que existe Deus. E Deus olha pelos artistas. A Censura fez muita gente crer que Deus está do lado dos poderosos, dos fariseus da política cultural. Mas resistir é para os abençoados”, diz.

Apesar de tudo o que passou, Neville não tem medo do governo que está por vir, com a ida de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto. “Existe uma Constituição. Ela nos protege. E quem sabe Deus não traz coisa boa”, diz Neville, que ainda acredita na potência do cinema. “Eu não vejo lmes de super-herói porque, nos anos 1960, eu lia ‘Batman & Robin’. Tudo o que tem nesses lmes estava nos quadrinhos. Não tem novidade; tem obscurantismo. Porém, Lars von Trier também não é o caminho: esse é só mediocridade espalhafatosa. A vida não está ali. A vida tá no ‘Grande Circo Místico’. O Cacá Diegues, que é um grande diretor, fez um lme memorável. O melhor que eu vi em muito tempo. É a prova de que o cinema brasileiro ainda pode brilhar”. 

*Roteirista e crítico de cinema

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