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Um thriller do lugar de fala da excelência

Depois de abrir o Festival do Rio e o de Londres, As viúvas entra em cartaz nos EUA com fome de Oscars e de revisionismo de conflitos raciais

divulgação -
om sua característica de fazer barulho, ainda que de forma discreta, o filme de McQueen dá o recado sobre os males que circundam a afirmação do feminino
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Mesmo sob a concorrência dos magos herdeiros de Harry Potter em “Animais Fantásticos”, a franquia comercialmente badalada cuja estreia agita cinemas do Brasil e do mundo desde quarta-feira, “As viúvas” (“Widows”) chega ao circuito americano com a promessa de mudar a história da representação racial negra nos EUA, nas telas, além de esbanjar potencial para fazer fortunas nas bilheterias. Quatro anos depois de papar o Oscar por “12 anos de escravidão”, o artista visual e cineasta inglês Steve McQueen volta a mexer com os brios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Teve US$ 40 milhões para filmar e um elenco de peso, liderado por Viola Davis. A julgar pelas críticas do mais alto calor recebidas em sua passagem pelos festivais de Toronto, Londres e Rio, seu novo filme pode ser um marco que discute várias questões contemporâneas.

Macaque in the trees
om sua característica de fazer barulho, ainda que de forma discreta, o filme de McQueen dá o recado sobre os males que circundam a afirmação do feminino (Foto: divulgação)

Um olho roxo, acariciado pelo agressor que o produziu no rosto de uma jovem loura solícita e apaixonada, é a metonímia da violência contra a mulher, um câncer que entra em “As viúvas” apenas de soslaio, num relance que, contudo, não pretende apequenar um problema tão grave e sim potencializa-lo pelas vias da sutileza – uma palavra de honra neste suspense policial de fios desencapados.

Com poucos gestos e palavras contadas a dedo, numa economia franciscana, Steve McQuen dá o recado sobre os males que circundam a afirmação do feminino, assunto que serve de espinha dorsal a esta tensa narrativa criminal. McQueen também não deixa o racismo passar batido, aplicando a mesma tônica: um rapaz negro é baleado, numa batida, apenas por estar dirigindo um carro de luxo numa Chicago violenta. Basta uma menção. A câmera inquieta, mordida por um bicho carpinteiro que a movimenta incessantemente, faz o resto: cava alarmismo em nosso inconsciente. É a marca do diretor inglês: é possível fazer barulho sendo discreto.

Associado ao filão “filme de assalto”, porém capaz de regar as cartilhas do gênero policial em uma ciranda de traições e reviravoltas, o novo longa-metragem do aclamado videoartista e cineasta que nos deu cults como “Shame” (2011) e “Hunger” (2008) arrancou o fôlego do Cine Odeon na abertura do Festival do Rio.

Previsto para estrear nacionalmente no próximo dia 29, “As viúvas” é a adaptação taquicárdica do romance homônimo de Lynda la Plante, já lançado aqui pela editora Intrínseca. Nele, três mulheres se unem para terminar um golpe iniciado por seus finados amores. Veronica (Viola, sempre no tom certo), Alice (Elizabeth Debicki, um achado, graças a seu ferramental cênico trágico) e Linda (Michelle Rodriguez) decidem honrar a memória de seus mortos envolvendo-se em um crime. A cabelereira Belle (a cantora Cynthia Erivo, em meteórica ascensão) entra nesse bonde lá pelo meio do filme, com o motorista do tal golpe. Robert Duvall e Colin Farrell completam o time.

Em 1993, McQueen dirigiu um curta memorável, “Bear”, feito mais de olho nas galeras do que nas telas, na qual dois homens negros nus se roçavam numa mistura de luta e dança. A fricção de peles e músculos continham um oceano de informações, digressões e reflexões indo de um debate sobre homofobia a um papo sobre a sexualização exacerbada dos negros pela mídia. Tá tudo em “Bear” sem sensacionalismo, amplificado por uma escala cromática que transita pelas múltiplas gradações do preto e branco na maneira de se enquadrar peles. Percebe-se um dispositivo similar nas várias vezes em “As viúvas” em que McQueen repete uma idílico troca de chamegos entre Viola Davis e Liam Neeson – ambos numa interação precisa.

Aqui, num equilíbrio surpreendente de ação e melodrama, vem de McQueen um filme elegante, feérico, de atomizações múltiplas dos tempos narrativos, do mais catártico empoderamento feminino, de Viola Davis, uma das maiores atrizes de nosso tempo.

* Roteirista e crítico