ASSINE
search button

Potencial desperdiçado

Luiz Carlos Barreto questiona como uma crescente e rentável indústria cultural brasileira pode ainda ser tratada com desdém pelo governo

José Peres/JB -
Luiz Carlos Barreto questiona como uma crescente e rentável indústria cultural brasileira pode ainda ser tratada com desdém pelo governo
Compartilhar

“O cinema está industrialmente falido. Os produtores ficam com 30% e os donos das salas, com 50% da renda bruta da bilheteria e eu não vejo perspectiva para o atual sistema econômico brasileiro. O ministro Delfim Netto precisa incluir a indústria cultural e o cinema como prioridade em suas metas”. Não fosse pelo detalhe do nome do ministro, a declaração poderia ser dita hoje por qualquer pessoa ligada ao cinema. O depoimento é de Glauber Rocha, num vídeo que circula na internet, provavelmente gravado no final dos anos 1970 (o cineasta morreu em 1981), onde o pai do Cinema Novo, mais uma vez, soava visionário. É a partir dessa lamentável constatação que Luiz Carlos Barreto começa sua entrevista, já chamando a atenção para os percentuais citados por Glauber que, atualmente, são ainda mais desfavoráveis: “Hoje, o produtor principal divide com os coprodutores entre 8 a 10% da bilheteria. A receita fica com o distribuidor e o exibidor”, informa.

Macaque in the trees
Luiz Carlos Barreto questiona como uma crescente e rentável indústria cultural brasileira pode ainda ser tratada com desdém pelo governo (Foto: José Peres/JB)

Barreto acaba de acumular mais um prêmio em sua longa carreira ao lado da mulher Lucy. O casal recebeu no México, no início desse mês, o Prêmio Fénix, da Academia Íbero Americana de Cinema, pelo conjunto da obra - mais de 130 filmes produzidos e coproduzidos em 55 anos de atividades da LC Barreto. Com essa trajetória, ele sabe muito bem do que fala quando o assunto é indústria cultural. “As culturas nacionais são ativos ainda não contabilizados. O cinema, teatro, música, dança, literatura, artes plásticas, moda, culinária e tantas outras manifestações são produtos artísticos, bens de consumo. E, ainda assim, as elites e o governo insistem na prática de uma política cultural voltada apenas para o fomento, esquecendo que a verdadeira democratização está no estímulo ao consumo dos bens e eventos culturais, proporcionando a autossustentabilidade do setor”, avalia ele, do alto de seus 90 anos.

Uma das preocupações de Barreto é que, mesmo a indústria cultural sendo um dos cinco negócios de maior rentabilidade do mundo, ainda seja encarada pelos governantes no Brasil com desdém, apenas como um valor simbólico de identidade cultural. “Temos um mercado interno dinâmico e poderoso para consumo de conteúdos culturais e, de acordo com relatórios da Pricewaterhouse, o Brasil cresce acima da média mundial. A previsão é de que o mercado brasileiro do entretenimento e lazer atinja, em 2020, entre 70 e 80 bilhões de dólares. Não podemos continuar a praticar uma cultura de salão como se o saber, a informação e o lazer devessem ser um privilégio de classe”, indigna-se, chamando a atenção para outro grave aspecto: “Como é possível que até hoje não tenha sido criado, por exemplo, um sistema de exportação de nossa cultura? Não há nenhum esquema como existe em qualquer outra área!”.

Crescimento na produção

O potencial de crescimento cultural no Brasil é ainda mais acentuado no cinema - nos últimos dez anos, chegou-se a um patamar de produção cinematográfica entre 120 a 150 filmes por ano. “Mas, se a produção avançou, caiu dentro de um mercado desregulado, com resultados econômicos pífios. Isso porque a Agência Nacional de Cinema se dedicou ao fomento e não à regulação e fiscalização do mercado - tarefas que não podem se misturar”, afirma. Segundo o produtor, uma das consequências disso é um ciclo de miserabilização do setor produtivo, com empresas descapitalizadas e endividadas. “Basta comparar a taxa de ocupação do mercado pelo filme brasileiro nos anos 1970 - cerca de 40% - à atual, que oscila entre 10 e 12%. Falando em exibição, com a nossa população de 220 milhões, o mínimo que poderíamos ter seriam 7 mil salas, mas sequer chegam a 4 mil”, lamenta.

A publicação “O impacto econômico do setor audiovisual brasileiro”, de 2016, traz uma tabela do número de salas de cinema por 100 mil habitantes. Os Estados Unidos lideram com 13,8 salas, enquanto o Brasil aparece atrás de cinco países latino-americanos com 1,5. “Apesar do considerável crescimento no número de lançamentos brasileiros no período (2017-2012), a participação de títulos nacionais nas vendas de ingressos não apresentou o mesmo ritmo”, consta no estudo. “Nossa cota de tela até os anos 1990, antes do Collor, era de 40%, quando tínhamos a Embrafilme e o Conselho Nacional de Cinema fiscalizando e regulando. Estamos com uma cota de tela atual de 28 dias por ano, referente a 2002, época em eram produzidos, no máximo, 30 filmes”, diz Barreto. Essa exigência mínima foi mantida para este ano através do decreto nº 9.256, assinado no final de 2017.

Outros números fortes na indústria cinematográfica são os relativos à criação de empregos e salários. “A cada R$ 1 milhão investido, são criados cem empregos, enquanto que apenas dez na indústria automobilística, por exemplo. Além disso, a remuneração dos trabalhadores do audiovisual costuma ser dez vezes maior que qualquer outra indústria”, afirma Barreto que, por outro lado, ressalta a carga tributária pesada que incide sobre o setor cinematográfico, em especial os produtores: os impostos “em cascata”, que incidem na produção, distribuição e exibição. “A Marisa Leão (produtora) conta que certa vez captou R$ 6 milhões para um filme e ao final percebeu que deveria pagar R$ 9 milhões em impostos. O produtor foi reduzido a um prestador de serviços”, lamenta, porém, sem pessimismo. Pois há o lado positivo onde, mesmo com todas essas dificuldades, o Brasil está entre os sete principais mercados de cinema do mundo.

Barreto lembra que participou da criação da Ancine - Agência Nacional do Cinema em 2001 ao lado de ministros e outros profissionais da área, como Cacá Diegues e Luiz Severiano Ribeiro, e lamenta que, ainda hoje, existam tantos desvios a serem corrigidos. “O principal deles é, sem dúvida, tirar o fomento de dentro da Ancine, que deveria passar a ser apenas uma agência reguladora. E desmanchar de vez a ideia de que o Fundo Setorial do Audiovisual seja alimentado por recursos públicos. A mesma coisa com a Lei do Audiovisual que, sendo uma lei de renúncia fiscal, não pode ser considerada recurso público e mais ainda tratada como coisa do governo”, cita. O produtor diz que os próprios dirigentes da Ancine e do Ministério da Cultura tratam os recursos como dinheiro público. “E ainda nos submetem à contabilidade pública! A verdade é que os agentes governamentais passaram para a população que nós mamamos nas tetas do governo. Mas é bem ao contrário, quando eles retêm recursos como superávit primário”, reclama.

Na opinião do produtor, o governo do PT até moldou um formato de capitalismo brasileiro competitivo mas, no caso do cinema, aconteceu ao contrário: se estatizou o modelo de produção. Em relação ao novo governo federal, ele diz que já está havendo um movimento de aproximação, através dos sindicatos e de associações de classes, de enviar informes sobre a situação do mercado a representantes do presidente eleito. “É uma aproximação institucional. Não podemos nos comportar como partidos políticos de oposição, afinal, somos um setor industrial e empresarial e temos que nos relacionar com os governos com objetividade e pragmatismo”, afirma Barreto, que tem opinião formada sobre a questão de fusão ou extinção de ministérios: “A fusão do ministério da cultura com o da Educação seria um retrocesso. Se for o caso, o mais adequado seria com os de Turismo e Esportes, porque esses dois setores se identificam com a crescente economia do entretenimento e lazer cultural. Eles já são os ‘big business’ do século XXI”.