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Com Daniel Dantas, no papel principal, Ary Coslov dirige sua quarta peça de Harold Pinter, O inoportuno, à qual assistiu em sua primeira montagem no Brasil, há 54 anos

Leo Ornelas/Divulgação -
Dantas interpreta morador de rua que vai morar com Mick (Aguiar, ao fundo) e Aston (Junqueira, ao lado)
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Para cuidar da casa e pacificar brigas intrafamiliares, quem poderia ser mais apropriado que um velho mendigo, o qual dois irmãos conhecem durante uma briga de bar? A escolha traz todo o sentido – ao termo escolhido pelo crítico Martin Esslin (1918-2002) para nomear o Teatro do Absurdo.

Húngaro de nascença, Esslin cunhou esse termo quando já estava radicado na Inglaterra, onde despontava um dos expoentes do subgênero, ao lado do irlandês Samuel Beckett (1906 - 1989), do romeno Eugène Ionesco (1909 - 1994), do francês Jean Genet (1910-1986) e do americano Edward Albee (1928), entre outros.

Nascido em uma família de origem judaica em Hackney, subúrbio de Londres, Harold Pinter (1930-2008), vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2005, teve o ambiente do ambiente de sua vizinhança – a qual incluiu a evacuação de sua casa durante um ataque alemão, na Segunda Guerra Mundial – na formação de seu universo criativo, repleto de personagens comuns, cotidianos, que, de repente, se veem imersos em situações jamais imaginadas anteriormente.

É o caso de Davies, personagem central de “O Inoportuno”, que estreia hoje no Teatro dos Quatro, na Gávea, interpretado por Daniel Dantas. Vivendo na rua há tempo considerável, ele é um almanaque ambulante de problemas e manias, – dos quais alguns o levaram à sarjeta e outros nela foram adquiridos. É então que, no meio da pancadaria, Aston (André Junqueira) o resgata e o leva até o apertado apartamento que divide com o irmão mais novo Mick (Well Aguiar), para que fique até se recuperar fisicamente e reorganizar seus documentos, perdidos durante a briga.

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Dantas interpreta morador de rua que vai morar com Mick (Aguiar, ao fundo) e Aston (Junqueira, ao lado) (Foto: Leo Ornelas/Divulgação)

Mick se ressente com a presença, em seu lar, do vagabundo levado pelo irmão, o que detona bombas na relação fraterna, já conturbada e agravada pelo pequeno espaço que precisam dividir, ainda mais quando Davies é convidado para ser o zelador do prédio em que vivem – acontecimento que deu origem ao nome original da peça, escrita em 1959 e encenada a partir do ano seguinte: “The caretalker” (“O zelador”, em português.

“Para começar, ele mesmo não sabe se leva essa proposta a sério”, dá a pista Daniel Dantas, que, aos 64 anos de idade e __ de carreira, encena pela primeira vez um personagem do autor, cuja morte completou uma década neste ano. “Vi a ‘Festa de aniversário’ [escrita em 1957 por Pinter] , em que minha irmã, Andrea Dantas, atua, sob direção do Gustavo Paso”, conta, sobre outra peça do autor inglês, encenada no Rio em 2017 e neste ano. “Não consigo muito pensar em termos de autores que ‘tenho’ que fazer, porque nunca daria conta. Já fiz alguns, mas não vira uma obsessão. Agora, quando veio o convite, li, adorei o texto e topei logo. Pinter é um desses autores que qualquer ator gostaria de fazer um dia”, afirma o ator, que, entre outros, já encenou Anton Tchecov (“Tio Vania”) e William Shakespeare (“Macbeth” e “Noite de reis”), além de ganhar o prêmio Moliére de melhor ator em 1991, por sua atuação em “Baile de máscaras”, de Mauro Rasi (1949-2003).

A forma de ver e mostrar o absurdo em pessoas comuns é o aspecto singular que o protagonista mais destaca na forma de Harold Pinter compor seus personagens – não por acaso, classificados “pinterescos” ao longo de sua carreira. “É bem curiosa é a forma com que ele flerta com o incrível e o que é bem crível. Uma coisa de personagens muito humanos, dentro de situações absurdas. Remete um pouco aos absurdos que a gente comete e, às vezes, não tem essa visão retrospectiva de pensar ‘por que eu fez isso?’”, compara Dantas. “O melhor é que ele nunca te dá essa resposta, deixa para você”, acrescenta.

Montada pela primeira vez no Brasil em 1964, pelo grupo Decisão, com direção de Antônio Abujamra (1932-2015), “O Inoportuno” foi assistida, entre outros, por Ary Coslov, então um jovem ator de 22 anos e que hoje dirige “O inoportuno”, em sua quarta incursão por Harold Pinter nos últimos dez anos.

Em 2008, logo no ano de sua morte, Coslov recebeu os prêmios Shell e APTR como melhor diretor, por “Traição” (“Betrayal”), um dos textos mais aclamados de Harold Pinter para o teatro. Já em 2011, ele montou “Pinteresco”, espetáculo composto por 12 esquetes originalmente escritos para teatro de revista, e, em 2015, dirigiu “A Estufa” (“The Hothouse”), de 1958.

Repetir o título adotado na montagem à qual assistiu há 54 anos, em vez de a tradução literal “O zelador”, também já utilizada, foi um tributo a Abujamra.

“Quando assisti pela primeira vez a uma montagem de um texto de Harold Pinter, no início de minha carreira como ator, justamente ‘The Caretaker’ – com o mesmo título ‘O Inoportuno’– foi um grande impacto, por conta de sua qualidade excepcional e de todas as inovações que apresentava”, conta Coslov, no texto de apresentação da peça. “Agora dirijo pela quarta vez textos de Pinter e me sinto profundamente tocado por esse fato. Usar o mesmo título é, de certa forma, uma homenagem a Antonio Abujamra, diretor daquela montagem de 1964 que marcou minha vida profissional”, acrescenta.

Ary Coslov também assina a trilha sonora do espetáculo, que tem iluminação de Paulo Cesar Medeiros e figurinos de Kika Lopes, com roupas aspecto desgastado e “atemporais”, para eliminar a referência ao período pós-guerra no qual a trama foi ambientada originalmente. Já o cenário de Marcos Flaksman reproduz o ambiente caótico e sufocante de um quarto pequeno e zoneado, onde os irmãos vivem entre duas camas velhas, roupas e caixas espalhadas, acúmulo de objetos sem utilidade e eletrodomésticos que não funcionam mais.

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SERVIÇO

O INOPORTUNO - Texto de Harold Pinter. Direção de Ary Coslov. Teatro dos Quatro (Shopping da Gávea - R. Marquês de São Vicente, 52/loja 264; Tel: 2239-1095). Sex. e sáb., às 21h; dom., às 20h. Estreia hoje. De hoje. R$ 80. Classificação etária: 12 anos. Até 23/12.