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Entrevista - Ivan Cardoso, cineasta: O terrir volta do Além

Mestre das comédias de horror nos anos 1980, Ivan Cardoso ganhará homenagem no Festival Rio Fantastik e será tema de documentário

Divulgação -
IVAN CARDOSO
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Com fôlego para se candidatar ao posto de mais importante evento de terror no país, dada a seleção de pérolas autorais em sua programação, o Rio Fantastik, festival de cinema dedicado a experiências narrativas com um pé no Além, abre sua nova edição nesta quinta, no Cine Joia, reverenciando um mestre brasileiro na arte do assombro e do riso, ou melhor, do “terrir”: Ivan Cardoso. Na década de 1980, o cineasta carioca, hoje com 66 anos, foi sinônimo de invenção – graças a “O segredo da múmia”, de 1982, um marco mundial da participação latino-americana na seara do horror – e garantia de bilheterias astronômicas – “As sete vampiras”, de 1986, virou fenômeno popular. Seus feitos estão sendo revisitados pelo crítico Mario Abbade, que prepara o documentário “Ivan, o terrível”, sobre a obra do realizador, reconhecido com um pilar da estética pop no Brasil. Mas, antes, de o .doc sair do forno vem o Fantastik, que começa neste 15 de novembro, às 21h15, com a exibição de um filme recente do realizador, “Bacanal do Diabo”. Na sequência, ele recebe o troféu Cramulhão pelo conjunto de sua carreira.

“Terror ainda é a maior diversão. Mas, na prática, o terror atual na minha vida é uma luta que estou tendo aqui no meu prédio, em Copacabana, pra resolverem uma infiltração no meu apartamento e pra não removerem umas fotografias minhas aqui do meu hall”, brinca Ivan. “E tem o terror do cinema brasileiro, que os editais só contemplam as mesmas pessoas, sempre”.

De sexta em diante, começa uma maratona horrorífica com 12 longas e seis curtas selecionados pelo crítico e escritor Carlos Primati, especialista no cinema fantástico. Serão exibidos filmes nacionais inéditos, aclamados pela crítica em sua passagem pelos festivais de Brasília e do Rio, como “Mormaço”, de Marina Meliande; “Morto não fala”, de Dennison Ramalho; e “A sombra do pai”, de Gabriela Amaral Almeida. O encerramento do Fantastik, com festa e entrega de troféus, será no Espaço Corcovado, no Cosme Velho, no dia 23, às 21h30, com direito a prêmio da Associação de Críticos de Cinema do Rio (ACC-RJ).

Macaque in the trees
IVAN CARDOSO (Foto: Divulgação)

JORNAL DO BRASIL - Como você definiria o terrir hoje? O que o filão representou no Brasil dos anos 1980?

IVAN CARDOSO: A última vez que eu falei com o poeta Décio Pignatari foi por telefone e ele caiu na gargalhada dizendo “Ivanzinho, você não percebe que essas pessoas de quem você fala hoje só pertencem à sua imaginação? A arte acabou ainda no século passado”. Isso foi um ano antes de o Décio morrer. Sob essa lógica dele, a sorte do cinema é que ele não arte, é diversão. Só sobreviveu no cinema brasileiro um cinema “come e dorme”, sem público, que é feito pra ninguém ver. Filmes esquerdofrênicos... e caros. O cinema brasileiro anda politicamente incorretíssimo em relação ao que o público quer. O Roger Corman (cineasta americano que produziu quase 400 longas de baixo orçamento e dirigiu uns 50, celebrizando-se como o “o rei do filme B”) fala de cara: “Filmes falados em idiomas não universais, restritos a poucos territórios, como o português, só podem custar meio milhão de dólares pela dificuldade de comercialização”. Converte isso: dá quase R$ 2 milhões. Com esse valor, dá pra se fazer um filmaço. Aqui no Brasil, tem gente querendo fazer filmes de R$ 10 milhões, R$ 12 milhões. Isso é pra quem não sabe filmar. Não temos nem mais salas de cinema que comportem o público de cinemão. Só o Odeon, que virou um espaço de festivais.

Seu novo projeto é sobre Corman, não é? Que filme é esse?

Estou finalizando um projeto de longa experimental chamado “O colírio do Corman me deixou doido demais”. Ele veio aqui ao Brasil há alguns anos, para uma palestra e eu levei-o para passear aqui no Rio. Em dado momento, ele se ofereceu pra pingar gotas de seu colírio no meu olho. Dali veio a ideia. Tarantino, que é fã dele, deve ter roído as unhas do pé de inveja de mim ao saber disso. Tenho ainda um projeto de documentário sobre o jóquei J. Ricardo, recordista mundial de vitórias. Vai se chamar “Dá-lhe, Ricardinho”.

O documentário “Ivan, o terrível”, que o crítico Mario Abbade prepara sobre você, vai rever sua colaboração para a história do horror udigrudi, a releitura quase chanchadesca do filão. O que ainda te fascina no terror?

O medo. Sentir medo. Eu tenho muito medo de morrer. Faço comédias de terror para enganar a morte. Mas era um tipo de cinema que dava 5 mil espectadores por dia num tempo em que as grandes salas de exibição do país não haviam se tornado tempos religiosos. Quando sou chamado pra algum festival do exterior, vejo alguns filmes que realmente dão medo, sobretudo os americanos, com muito recurso. Mas eu me volto para a simplicidade, cada vez mais, e vejo com encanto usar fantasias de Clóvis, por exemplo, como elemento cultural do terror.

Em paralelo ao cinema, você tem uma obra respeitada como fotógrafo. O que a fotografia representa pra você como expressão estética? Qual foi sua foto mais curiosa de sacar?

A mais controversa foi a foto que fiz do Raul Seixas de cuecas. E fiz uma foto do Godard, em Cannes, em 1982, quando exibi “O segredo da múmia” na Croisette. Fotos são necrológicos: no fundo, ao retratar uma pessoa, você está guardando algo que vai morrer. Eu vivo em sintonia com esses mortos. Porém, gostaria que todos os meus amigos vivos fossem à homenagem no Rio Fantastik. Depois dela, vou estar entre os vivos mais uma vez, logo, logo, com uma grande exposição no MAM, para o ano que vem, e tenho uma outra mostra no Studio OM.art pela frente.

O que mais te assusta no atual cenário político brasileiro?

O mau humor. As pessoas estão muito rancorosas dos dois lados. E todo mundo só explora o assistencialismo. Como já dizia o Raul Seixas, “A miséria é supérflua”. Eu convivo com a memória do Raul, de quem eu fiz várias fotos. Fotografei ele, o Helio Oiticica, o Tim Maia. Essa turma fazia diferença política com a sua irreverência. É essa turma, toda morta, mas viva dentro em mim, que ilumina o meu pensamento político aplicado à arte.

O que você espera do futuro?

Não espero nada. O Brasil é um país condenado ao terror.

*Roteirista e crítico de cinema